segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

A "Carta sobre os Sínodos" de Atanásio de Alexandria e a difícil situação da Igreja no séc. IV

Capa da edição bilingue (grego/francês) do texto da Carta sobre os Sínodos, de Atanásio de Alexandria


Acabei de terminar a resenha da edição bilingue (grego/francês) do texto da Carta sobre os Sínodos, de Atanásio de Alexandria, a ser publicada na revista Laval théologique e philosophique, da Université Laval. O texto é difícil, mas também de extrema importância para a compreensão de um dos momentos mais importantes e ao mesmo tempo mais confusos da história da Igreja: o pós Concílio de Niceia

O Concílio de Niceia (325) elaborou um símbolo de fé que dizia que Jesus era "gerado, não criado, e substancial ao Pai". Esse símbolo de fé visava expressar de maneira dogmática - e portanto definitiva - a divindade de Cristo e, assim, resolver as polêmicas cristológicas levantadas desde o início do séc. IV sobre a divindade de Cristo, por aquilo que se convencionou chamar de Arianismo. O objetivo do Concílio de Niceia não era somente dizer clara e dogmaticamente que Jesus era Deus, mas, além disso, dizer como essa divindade deveria ser expressada (daí a adoção das expressões "gerado" e "consubstancial").  

Engana-se, no entanto, quem acha que as polêmicas foram resolvidas pelo Concílio; na verdade, elas até pioraram e os 50 anos seguintes ao Concílio viram uma das mais polêmicas controvérsias teológicas da história da Igreja. De um lado, aqueles que defendiam o credo niceno - representados e liderados principalmente por Atanásio de Alexandria - do outro, os que se opunham ao Concílio. 

Deve-se notar que nesse segundo momento da "crise Ariana", aqueles que eram contrários ao Símbolo niceno não eram necessariamente contrários à ideia de que Cristo era Deus, mas sim à forma como essa divindade era definida pelo próprio Símbolo. A maioria não concordava com o uso das expressões "gerado" e principalmente "consubstancial", dizendo, dentre outras coisas, que não se tratava de expressões bíblicas, mas de vocábulos que tinham sido emprestados do vocabulário filosófico grego. Por isso, costuma-se chamar a esses de "neo-arianos", já que eles não eram exatamente iguais aos arianos da primeira metade do séc. IV, que negavam a divindade de Cristo. Entre os neo-arianos encontravam-se diversos bispos e importantes e influentes teólogos da época, o que demonstra a grande dificuldade que foi manter intacto o Símbolo de Niceia e sua maneira de expressar a divindade de Cristo.  

Nessa Carta sobre os Sínodos, Atanásio fala de vários sínodos (ou seja, reuniões de bispos) orientais posteriores ao Concílio de Niceia, sínodos estes que tentaram invalidar o próprio Credo niceno ou corrigi-lo: Jerusalém (335), Antioquia I (341), Antioquia II (344), Sirmium I (351), Sirmium II (357), Rimini (357), Seleucia (359), Constantinopla (360) e Antioquia III (361). 

Obviamente, Atanásio condena virulentamente essas tentativas, defendendo com unhas e dentes o Símbolo niceno, que seria ratificado pelo I Concílio de Constantinopla, cerca de 20 anos depois de a Carta sobre os Sínodos ter sido escrita. Aliás, a controvérsia Ariana só foi definitivamente resolvida com o I Concílio de Constantinopla (381), graças também à ação teológica dos chamados "Padres Capadócios" (Basílio Magno e os dois Gregórios). 

Mas, se a doutrina de Niceia sobre a divindade de Cristo conseguiu sobreviver ao complicado o séc. IV, isso se deve em grande medida à atuação incansável de Atanásio, que, por muito tempo, foi praticamente o único defensor do Símbolo niceno. Sem sua persistência, a doutrina trinitária tal qual definida pelo Concílio de Niceia provavelmente teria desaparecido.          

sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

Mais um texto antigo com "ensinamentos secretos de Jesus"? Dessa vez para seu "irmão"?

Pág. 26 do Codex V de Nag Hammadi, que contém um trecho de uma das versões coptas do Primeiro Apocalipse de Tiago.



O Natal está chegando e você já sabe o que isso significa: é a época que a mídia gosta de lançar grandes reportagens sobre Jesus e pretensas novas "descobertas" bombásticasa respeito d'Ele. Já falamos sobre isso no blog (clique aqui); as semanas que antecedem a Páscoa e o Natal são as prediletas da mídia para se lançar esse tipo de reportagem, porque são as épocas em que a sensibilidade religiosa das pessoas está mais a flor da pele, tornando-as mais propensas a consumirem esse tipo de notícia e tudo que está relacionado a elas (livros, filmes, documentários, etc). 

Pois é, esse ano não foi diferente. Há alguns dias, uma série de reportagens e artigos foram publicados sobre um suposto "Papiro com ensinamentos de Jesus a seu irmão" que teria sido encontrado. Foi assim o jornal O Globo, por exemplo, noticiou a questão em sua edição on line. A matéria pode ser consultada clicando aqui

O texto em questão se chama Primeiro Apocalipse de Tiago. E dessa vez eu dei sorte de novo, porque se trata de um dos textos que eu mais conheço. Trabalhei com ele na minha tese, e tenho até artigos escritos sobre ele (quem quiser ver um artigo sobre esse texto escrito por mim em português, pode clicar aqui).

Mas como assim? Como você escreveu um artigo sobre esse texto se ele foi descoberto agora? Como você trabalhou com ele na sua tese se, como a própria manchete do Globo diz, ele foi encontrado só agora?

Na verdade, o texto já é conhecido desde a descoberta dos manuscritos de Nag Hammadi, o corpus literário de apócrifos cristãos que eu estudo. Os textos em questão foram descobertos em 1945, no sul do Egito, e foram sendo publicados ao longo das décadas seguintes (para detalhes sobre a descoberta, clique aqui). Em 2006, a publicação do Codex Tchacos (volume que contém o famigerado Evangelho de Judas) trouxe ao conhecimento dos estudiosos outra versão desse mesmo texto, o Primeiro Apocalipse de Tiago. 

Essas duas cópias do texto em questão, a de Nag Hammadi e a do Codex Tchacos, são versões/traduções escritas em copta (a língua nativa do Egito na Antiguidade Tardia). 

Eu inclusive coloquei uma questão sobre o Primeiro Apocalipse de Tiago em uma das provas que eu elaborei e apliquei esse semestre: 





Mas enfim, qual o motivo então desse escarcéu todo? Descobriram ou não descobriram algo? 

Sim, descobriram. Descobriram fragmentos gregos do Primeiro Apocalipse de Tiago, em meio aos famosos papiros de Oxyrhyncus. O texto em questão foi provavelmente composto originalmente em grego, na segunda metade do séc. II; em algum momento do séc. IV, ele foi traduzido do grego para o copta. O que se tinha até então eram duas cópias/versões dessa tradução copta. Com a descoberta dos fragmentos, temos agora um pedacinho do texto em sua língua original de composição, o grego. Isso não significa, porém, que os fragmentos sejam do séc. II. Os fragmentos são provavelmente posteriores, mas, podem conservar o texto original (lembrando que texto original não é sinônimo de manuscrito original).    

O anúncio da descoberta foi feito por Geoff Smith e Brent Landau, durante o congresso anual da Society of Biblical Literature desse ano, em Boston. Notem que o Congresso em questão aconteceu entre os dias 18 e 21 de novembro, mas, a notícia só chegou ao grande público agora, algumas semanas depois, já mais próximo do Natal. 

Os fragmentos em questão foram encontrados durante escavações em Oxyrynchus entre 1904 e 1905, mas só foram identificados agora, cerca de 100 anos depois. Eles estão guardados na Biblioteca Sackler, na Universidade de Oxford.   

Infelizmente, até onde eu pude apurar, não foi divulgado ainda o conteúdo dos fragmentos, ou seja, a quais partes do texto copta eles corresponderiam. É possível que eles possam preencher partes do texto que não eram conhecidas nas versões coptas devido a lacunas no manuscrito. 

Os fragmentos ainda não foram publicados, mas, a publicação foi anunciada para um futuro próximo. 

Sobre o texto do Primeiro Apocalipse de Tiago, não podemos deixar de citar que ele se trata de um apócrifo. Assim sendo, todas as características gerais de um apócrifo se aplicam a ele. Trata-se, portanto, de um texto tardio em relação aos textos do Novo Testamento (os textos do Novo Testamento foram todos compostos até o ano 100, enquanto que os apócrifos foram todos compostos posteriormente à segunda metade do séc. II, ou seja, de 150 em diante). Como se trata de um texto tardio, não se pode considerar que o Primeiro Apocalipse de Tiago seja uma fonte confiável para o estudo do Jesus histórico e dos personagens que o cercaram. 

Outra característica geral dos apócrifos que se aplica ao Primeiro Apocalipse de Tiago é a chamada pseudonímia: um autor desconhecido qualquer, ávido por conferir autoridade a seu texto, atribuía sua autoria a um personagem célebre. Ou seja, os autores dos apócrifos são desconhecidos. No caso que nos interessa aqui, o Primeiro Apocalipse de Tiago, não se trata de um texto escrito por Tiago. O autor, seja ele quem for, apenas atribuiu o texto a Tiago, para que as pessoas que o lessem o levassem a sério.  

Por fim, resta esclarecer a polêmica questão relativa ao "irmão de Jesus". Essa é uma questão complexa que mereceria um post específico (que prometo para o futuro). Por hora, basta dizer que no caso do texto discutido aqui, a fraternidade entre Jesus e Tiago é uma fraternidade espiritual, e não carnal. O próprio texto coloca as seguintes palavras na boca de Jesus ao se referir a Tiago: "Não és meu irmão segundo a carne" (NH V 24, 15-16). Ou seja, trata-se de uma fraternidade espiritual.