segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Sola scriptura: a construção e a transmissão do texto bíblico.

Antes de tudo, quero deixar claro que esse post não pretende ser ofensivo em relação aos protestantes frequentadores do blog; na verdade, não pretende ser ofensivo em relação a ninguém. Quero somente tecer algumas considerações sobre o princípio da sola scriptura e a construção e transmissão do texto bíblico. Resolvi escrever sobre o assunto porque vi que o termo "Reforma Protestante" está hoje entre os TT's no Twitter, aparentemente por se tratar do aniversário do episódio em questão.
Até onde sei, o princípio em questão não nega totalmente a Tradição; ele diz somente que a Bíblia tem primazia sobre  a própria Tradição e que havendo divergências entre ambas, vale o que está escrito nas Escrituras. No entanto, outros movimentos protestantes, considerados, via de regra, mais radicais criaram o princípio da Nuda scriptura, negando completamente a Tradição e considerando que a Bíblia pode ser interpretada por si só.

Falemos primeiramente da Nuda scriptura. Me desculpem os que pensam o contrário, mas tal princípio é insustentável. Um texto para ser bem interpretado precisa ser considerado em seu contexto. Mesmo que se acredite que as Escrituras sejam divinamente inspiradas, não há como negar que elas foram compostas utilizando uma linguagem humana, inserida na história. Além do mais,
a Tradição é responsável pela conservação, compilação e transmissão das Escrituras. Sem a Tradição, não haveria Novo Testamento.

Às vezes tenho a impressão de que querem que eu acredite que alguém, no séc. I, reuniu o Novo Testamento num códice, entrou numa máquina do tempo e viajou até o séc. XVI, entregando o códice em questão aos reformadores. Ora, sabe-se que o fragmento mais antigo conhecido do Novo Testamento, um extrato do Evangelho de João - pertencente à coleção de Papiros Rylands  - data provavelmente do início do séc. II. Não há manuscritos neo-testamentário mais antigos do que isso. Sabe-se, por exemplo, que no início do séc. II, a Igreja primitiva já havia se organizado segundo a hierarquia episcopal. De qualquer forma, os códices completos de textos bíblicos mais antigos datam todos do séc. IV - como os códices Sinaiticus e Vaticanus, por exemplo -  época em que, sem dúvida, a Igreja já estava hierarquicamente e dogmaticamente organizada. Esses códices são ferramentas indispensáveis para o estabelecimento do texto grego do Novo Testamento. E esses códices do séc. IV foram, obviamente, conservados pela tradição das Igrejas cristãs primitivas. Se não houvesse Tradição, esses textos não teriam sido conservados. Por isso, caro leitor do blog, é sempre bom perguntar: a tradução do seu Novo Testamento se baseia em qual texto Grego? Em qual códice?

No mais, sem a Tradição nós não seriamos capazes nem de afirmar quem são os autores dos Evangelhos, por exemplo, já que não há menção alguma de seus autores nos próprios textos. Os títulos que atribuem as autorias a Mateus, Marcos, Lucas e João são obra de editores da antiguidade tardia, que se basearam, obviamente, na Tradição para adotar tal atribuição.


Em relação ao princípio da Sola scriptura, gostaria apenas de dizer que não me lembro de casos em que a Tradição contradiga as Escrituras. Muito pelo contrário, a Tradição, habitualmente, elucida as Escrituras, interpretando-a e explicando por meio de pessoas que estavam mais próximas do contexto de composição dos próprios textos bíblicos.

No mais, é intrigante perceber que o princípio em questão acaba muitas vezes por afastar acadêmicos protestantes do estudo da Patrologia. Mesmo que de maneira inconsciente, muitos estudiosos protestantes, talvez influenciados pela Sola scriptura, ignoram quase que completamente a literatura cristã antiga que não faz parte das Escrituras.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Os sermões perdidos de Agostinho

Não é segredo para ninguém que Agostinho foi o maior escritor cristão da Antiguidade; ninguém deixou um legado literário tão extenso e complexo quanto o bispo de Hipona.
Sabe-se também que volta e meia um ou mais sermões desconhecidos atribuidos a Agostinho  são encontrados em bibliotecas européias, em meio a manuscritos medievais esquecidos e não catalogados. Isso demonstra que a incrível produção literária de Agostinho é ainda maior do que imaginávamos. Nada impede que outros sermões "perdidos" sejam encontrados.
Pois bem, hoje tive a oportunidade de assistir uma palestra da Professora Anne Pasquier, da Faculdade de teologia e ciências das religiões da Université Laval, sobre um desses sermões perdidos, o Sermão Dolbeau 26. A professora mencionou por alto o achado de cerca de 20 novos sermões atribuidos a Agostinho na Alemanha em 2008, em manuscritos do séc. XII. O próprio Sermão Dolbeau 26 foi achado também na Alemanha em 1990, em meio a cerca de 60 sermões inéditos igualmente atribuidos a Agostinho, num manuscrito provavelmente copiado no séc. XV.
O sermão em questão, ainda segundo a professora, reflete a situação da Igreja africana no início do séc. V; fala basicamente da conversão dos pagãos, em face das proibições legais dos próprios cultos pagãos e do problema donatista, que acabaria por gerar um cisma na cristandade africana em 405. O sermão foi provavelmente composto em 404, à epoca do início do episcopado de Agostinho.