terça-feira, 25 de janeiro de 2011

O Apocalipse copta de Paulo e o corpus paulino no século II

Seguindo a linha do post anterior, já que hoje a liturgia latina celebra a conversão de São Paulo, aí vai um post sobre um pouco do legado literário do "Apóstolo das Gentes". 

É sabido que as epístolas compostas por Paulo (sem entrar na discussão das chamadas epístolas deuteropaulinas), todas nas décadas de 50 e 60 do séc. I, eram endereçadas a comunidades ou pessoas em específico; logo, em princípio, elas visavam resolver problemas grosso modo pontuais, em geral peculiares àquelas comunidades as quais cada uma das epístolas era endereçada. No entanto, com o o tempo, essas epístolas, que em princípio foram endereçadas a comunidades específicas, deixaram de ser patrimônio único das comunidades em questão e passaram a ser utilizadas e respeitadas por toda a cristandade. É provável, inclusive, que a partir de um determinado momento, os cristãos passaram a se utilizar de conjuntos de epístolas paulinas que não circulavam mais separadamente, mas juntas, numa espécie de corpus paulino. É provável que isso tenha demandado certo tempo para começar a acontecer, se levarmos em conta a dinâmica de difusão e consumo de textos na antiguidade. Seria praticamente impossível fixar uma data exata de quando isso começou a acontecer, mas antes do séc. II seria muito pouco provável.

Enfim, é aí que entra o Apocalipse copta de Paulo (NH V, 2), também conhecido como ApocPaulo de Nag Hammadi e que não deve ser confundido com o mais conhecido, porém, mais tardio, Apocalipse Latino de Paulo; trata-se de um texto seguramente pseudonímico, composto na segunda metade do século II, provavelmente em grego. O texto nos relata uma ascensão de Paulo, provavelmente beseada no relato de 2 Coríntios. Mas além de fazer referência clara ao episódio de 2Cor 12, 2, o nosso Apocalipse de Paulo faz alusões a outros textos do corpus paulino, como Romanos, Galatas e Efésios. 
Isso demonstra que, muito provavelmente, o autor do Apocalipse de Paulo tinha conhecimento não apenas de 1 epístola paulina, mas de várias, um argumento em favor da existência de um corpus paulino já na segunda metade do século II.
Deixando de lado o conteúdo propriamente dito do texto, vale dizer que ele é particularmente interessante para o estudo da difusão e do consumo do Novo Testamento na antiguidade. 
Posso estar enganado, mas proporcionalmente - o Apocalipse de Paulo é pequenho, cerca de 6 páginas e meia - o texto em questão deve ser um dos que mais faz alusões a epístolas paulinas no século II.  

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Santo Antão

Hoja a liturgia romana comemora a festa de Santo Antão, anacoreta egípcio que é conhecido como "pai dos monges".
De início, gostaria de dizer que acho esquisito chamarmos esse santo de "Antão", visto que tanto em grego quanto em copta seu nome é Antonios. Em inglês e em francês ele é chamado respectivamente de "Antony" e "Antoine", ambos equivalentes do português "Antônio". Enfim, não sei até hoje porque o chamamos de "Antão".
Antão nasceu na segunda metade do século III e viveu até a primeira metade do séc. IV. Provavelmente tinha o copta como sua língua materna. Ainda jovem, resolveu se refugiar no deserto egípcio vivendo como anacoreta. Ele não foi o primeiro a fazer isso, mas foi com certeza o que ganhou mais notoriedade. Era visto como santo e possuidor de carismas de clarividência já por seus contemporâneos. Ele ficou especialmente famoso porque Atanásio de Alexandria escreveu sua biografia, a chamada Vida e conduta de Santo Antão. A Obra influenciou bastante a mentalidade monástica cristã, tanto a ocidental quanto a oriental.
Antão é o exemplo mais conhecido de um fenômeno que começou a se espalhar no cristianismo oriental, principalmente a partir do séc. IV e em especial no Egito: pessoas, principalmente provenientes do campo, que deixavam o convívio social e passavam a viver no deserto ou em cavernas como anacoretas. Logo surgiram também aqueles que viviam uma vida de ascese extrema, mas em grupo, submetidos a uma regra comum, os primeiros monges cenobitas, também no Egito no séc. IV.
O monasticismo, seja ele anacoreta ou cenobita, passou a ser visto como uma espécie de "novo martírio", em uma época na qual não havia mais perseguições institucionais aos cristãos (a partir do início do séc. IV). O monge, então, era visto como aquele que morria para o mundo, passando a viver isoladamente.
O monasticismo é muita vezes visto pelo senso comum como um fenômeno medieval, mas o fato é que ele surgiu na antiguidade e deve, portanto, estar inserido nos estudos e reflexões relativos ao cristianismo primitivo. É interessante notar, por exemplo, que muitos dos manuscritos antigos orientais pertenceram a bibliotecas monásticas.
A quantidade de anacoretas e monges cenobitas no Egito do séc. IV não pode ser precisada, mas com certeza era grande, a ponto de Atanásio dizer que os que seguiram o exemplo de Antão eram tantos que "o deserto tornou-se uma cidade".