quarta-feira, 26 de setembro de 2012

O 'Evangelho da Esposa de Jesus' parte 3

Pouco mais de uma semana depois do anúncio de Karen King no X Congresso Internacional de Estudos Coptas, as reações de estudiosos dos mais diversos campos de estudo do cristianismo primitivo quanto à autenticidade do suposto fragmento continuam a se multiplicar. 
As primeiras reações negativas quanto à autenticidade do fragmento foram informais, ainda nos corredores do Instituto Patrístico Augustinianum, e podem ser conhecidas no nosso post da semana passada
Alguns dias depois, ainda durante o Congresso Copta, alguns estudiosos manifestaram suas dúvidas em relação ao caráter autêntico do fragmento em entrevistas a agências de notícias internacionais; o professor Francis Watson publicou na internet um curto artigo apontando evidências de falsificação moderna. Tanto as reações de alguns estudiosos via agências de notícias quanto o artigo de Francis Watson podem ser conhecidos por meio do nosso post do dia 21 de setembro.

Desde então, outros estudiosos se manifestarem, todos eles duvidam da autenticidade do fragmento e argumentam que se trata provavelmente de uma falsificação moderna. Ontem,  Gesine Robinson enviou um e-mail a vários estudiosos com alguns comentários e evidências que poderiam demonstrar que se trata, de fato, de uma falsificação; o e-mail me foi encaminhado pelo meu co-orientador, Paul-Hubert Poirier. Além de fornecer 10 evidências que apontam para uma fraude, Gesine Robinson ainda lamenta profundamente a "nova tendência" adotada por alguns estudiosos em guardar segredo sobre a descoberta de novos manuscritos antigos, ao invés de procurar a ajuda da comunidade acadêmica para decifrar, datar e publicar o documento. Vale lembrar que o anúncio de King no Congresso Copta, coincidiu com a publicação de uma matéria no NY Times; ou seja, ela preferiu os holofotes da mídia de massa para anunciar a descoberta, ao parecer de estudiosos propriamente ditos. Algo semelhante aconteceu no caso do Evangelho de Judas, cujo conteúdo ficou restrito a alguns estudiosos contratados pela National Geographic até a publicação do texto, que foi lançado por meio de um documentário sensacionalista.

Hoje, foi a vez de Alin Suciu e Hugo Lundhaug publicarem um texto no site do próprio Alin com mais questionamentos sobre a autenticidade do fragmento. O texto é muito bem explicado e, creio eu, pode ser entendido por qualquer um que consiga ler inglês. Ele pode ser visualizado aqui.

As evidências de falsificação continuam se multiplicando.

A notícia mais "fresquinha" sobre essa questão diz que a Harvard Theological Review decidiu barrar a publicação do conteúdo do fragmento, devido, exatamente, às dúvidas levantadas pela comunidade acadêmica quanto a sua autenticidade. Quem deu a notícia foi Greg Evans.     






sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Mais sobre o 'Evangelho da esposa de Jesus'

Pude acompanhar nos últimos dias uma avalanche de reações negativas de estudiosos em relação à autenticidade do fragmento apresentado por Karen King no X Congresso da Associação de Estudos Coptas.
O seguinte artigo publicou trechos de entrevistas com alguns especialistas que estavam presentes à conferência de King em Roma, entre eles, meu amigo, Alin Suciu, e meu professor de copta, Wolf-Peter Funk:
http://www.ajc.com/news/ap/top-news/harvard-claim-of-jesus-wife-papyrus-scrutinized/nSFRz/


Alin está convencido de que se trata de uma falsificação.

Stephen Emmel disse que "há algo nesse fragmento, em sua aparência e na gramática do copta, que me impressiona  como algo que de alguma maneira não é totalmente convincente".

Sobre o conteúdo do fragmento, Funk disse algo como "há milhares de sobras de papiros onde você acha essas coisas malucas. Pode ser qualquer coisa". Ele fazia referência ao fato de o fragmento ser tão pequeno e fora de contexto, o que praticamente impossibilitaria sua interpretação.

Vários estudiosos também chamaram atenção para o fato de o fragmento conter trechos que são praticamente paralelos exatos de escritos conhecidos do público em geral, como o Evangelho de Tomé. Tais paralelos são tão exatos que passam a impressão de que foi feito uma espécie de "bricolagem", que o autor(a) escolheu a dedo o que ia copiar no fragmento.

Quem lê inglês e conhece um pouco de copta, pode ler o pequeno artigo, bastante elucidativo, escrito pelo prof. Francis Watson, da Universidade de Durhan, Reino Unido.

O artigo pode ser visualizado em pdf aqui

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

O Evangelho da Esposa de Jesus

O Evangelho da Esposa de Jesus, assim Karen King, professora de Harvard, nomeou um suposto novo fragmento copta que ela mesmo tornou público na última terça-feira, em Roma, no Congresso Internacional de Estudos Coptas. Como não lembrar do Evangelho de Judas, cuja existência foi anunciada no mesmo Congresso, em 2004, por Rodolphe Kasser.
Ainda não conheço as medidas exatas do fragmento, mas uma foto dele pode ser visualizada numa reportagem do New York Times. O fragmento em questão tem oito linhas e nele podem ser lidas partes de frases atribuídas a Jesus potencialmente polêmicas como "Jesus lhes disse: 'minha esposa...'" e "ela será capaz de ser minha discípula...".

São muitas as questões a serem consideradas. Comecemos pelo anúncio feito por Karen King e a questão relativa ao fato de o manuscrito ser uma falsificação ou não. 

Dois estudiosos que eu conheço muito bem, meu orientador ,Louis Painchaud, e o meu colega, Alin Suciu, estão em Roma no Congresso de Estudos Coptas e tiveram a oportunidade de assistir ao vivo à conferência da professora King. O professor Painchaud disse hoje de manha, via facebook, que King não pôde mostrar fotos do dito fragmento durante a conferência por problemas técnicos; segundo ela, seu computador havia pifado durante o vôo que a levou a Roma. Obviamente, a primeira reação dos estudiosos presentes foi pedir para ver o fragmento, o que só se tornou possível depois da conferência. A reação dos estudiosos presentes foi mais ou menos a mesma: 
1- A caligrafia é extremamente peculiar e nenhum dos presentes jamais tinha visto esse tipo de escritura e letra num manuscrito copta;
2- A forma do fragmento e suas bordas não correspondem ao que se vê normalmente em um fragmento copta antigo; as bordas são muito regulares, o "corte" muito reto.
Vejam abaixo fotos de alguns fragmentos do Codex I de Nag Hammadi, do séc. IV. Comparem com a foto da reportagem do NY Times e notem as diferenças. Vejam como as bordas dos fragmentos de Nag Hammadi são muito mais irregulares.



3- O conteúdo do suposto fragmento parece ter sido feito sob medida, para satisfazer os anseios do grande público sobre questões que já renderam muita discussão, livros e dinheiro, a suposta relação conjugal entre Maria Madalena e Jesus, e a possibilidade de terem existido "discípulas" de Cristo. É interessante notar também que a própria Karen King é responsável por várias pesquisas, estudos e livros relativos aos temas citados; ela escreveu muito sobre Maria Madalena e sobre o papel da mulher no cristianismo antigo. Seria, portanto, uma grande coincidência que esse fragmento tenha caído justo nas mãos dela. 
4- Ainda segundo o professor Painchaud, o que circulava nos corredores do Congresso Copta sobre o tal fragmento, e que definia bem a posição dos estudiosos presentes, resumia-se à seguinte frase: "It is a fake", em português, algo como "É uma falsificação".

Ainda é muito cedo para definir se de fato é uma falsificação ou não; de qualquer modo, se for esse o caso, eu arriscaria dizer, em conformidade com o que se anda dizendo no Congresso, que King não seria a autora de tal falsificação, mas a vítima (na linguagem de internet, poder-se-ia dizer que ela foi "trolada"). Como não lembrar do famoso caso do Evangelho Secreto de Marcos, que acabou com a reputação de Morton Smith.

King ainda teria sugerido que o fragmento dataria do séc. IV. Ora, é praticamente impossível datar com tanta precisão um fragmento copta. A maneira mais segura de datar um manuscrito antigo ainda é a paleografia; infelizmente, a  paleografia copta ainda é muito incipiente, e a menos que o fragmento, o manuscrito ou o codex contenham uma data escrita pelo escriba, a datação é especulativa. Portanto, nada, absolutamente nada nesse momento, pode garantir que o fragmento seja efetivamente do séc. IV. Isso se considerarmos que ele é verdadeiro, o que, pelo visto, não  é tão evidente assim.

Alguns meios de comunicação brasileiros publicaram reportagens sobre o fragmento dizendo que se tratava de um manuscrito do séc. II. Seguem os links abaixo:
http://noticias.uol.com.br/ciencia/ultimas-noticias/reuters/2012/09/18/texto-em-pedaco-de-papiro-sugere-que-jesus-foi-casado.htm

http://noticias.terra.com.br/ciencia/noticias/0,,OI6163867-EI8147,00-Fragmento+de+texto+do+seculo+II+fala+em+mulher+de+Jesus.html

Ora, a língua copta escrita não existia antes do fim do séc. III, logo, qualquer manuscrito ou fragmento em copta é necessariamente posterior a essa data. No caso do primeiro artigo, o do portal UOL, eles corrigiram a suposta data depois de um comentário meu.

Muitos estão me perguntando sobre o conteúdo do fragmento, se isso mudaria algo nas crenças sobre Jesus. É claro que não. Mesmo se considerarmos que o fragmento é verdadeiro, trata-se de um texto tardio que não pode, de maneira alguma, ser considerado fonte fidedigna para o estudo de Jesus, sua época e dos personagens que o cercaram. Trata-se, no entanto e provavelmente, de uma tradição tardia acerca de Jesus. Mas é sempre difícil explicar isso às pessoas. Como diz o velho ditado, " a primeira impressão é a que fica". Portanto, pouco importa o que seja dito pelos especialistas - e digo isso por experiência própria, vivida nos casos do Código da Vinci e do Evangelho de Judas - a polêmica está lançada e a maioria das pessoas já tem idéia formada sobre o assunto.
Por fim, vale lembrar que a idéia de uma esposa de Jesus não é inédita na tradição apócrifa copta; outros textos, como o Evangelho de Filipe falam do assunto. Mas essa relação conjugal é sempre apresentada como uma relação espiritual, nunca como uma relação humana ou carnal. Mais detalhes sobre essa questão podem ser visualizados numa conferência que apresentei em 2006.

Enfim, muita água ainda vai passar por debaixo dessa ponte. Ainda vamos ouvir muita coisa sobre esse tal fragmento. Ficarei atento e assim que as novidades forem surgindo, eu posto aqui no blog. 


sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Nota de falecimento: Marvin Meyer

Estive de férias durante as três últimas semanas do mês de agosto e, durante esse período, fiquei sabendo por meio do perfil de amigos do facebook do falecimento do estudioso do cristianismo primitivo Marvin Meyer.
Não posso negar que o falecimento de Meyer foi uma surpresa, pois, ele era relativamente jovem - morreu aos 64 anos - e parecia estar "bem conservado". O que eu não sabia, porém, é que ele tinha um melanoma, que acabou causando seu falecimento. Ele faleceu no dia 16 de agosto de 2012.
Meyer ficou conhecido do grande público por suas publicações e trabalhos sobre textos potencialmente polêmicos, como o Evangelho de Tomé e o Evangelho de Judas. Ele foi um dos principais colaboradores da National Geographic na edição do Evangelho de Judas e o grande defesor da tese - tão criticada nesse blog e por diversos outros estudiosos no mundo inteiro - segundo a qual o texto em questão apresentava um Judas herói.
Talvez, um dos grande méritos de Meyer seja a popularização e vulgarização do chamado gnosticismo e da Biblioteca de Nag Hammadi. É importante dizer, no entanto, que esse trabalho de vulgarização e popularização realizado por Meyer muitas vezes causou desconfiança na maioria dos estudiosos da áera.
Quem me conhece sabe que, academicamente, eu nunca fui um fã do trabalho dele; mas isso não significa que eu não lamente sua morte.

Mais informações sobre esse estudioso americano, bem como um panorâma de suas publicações e trabalhos, podem ser obtidas em seu site, atrelado ao site da Chapman University, clicando aqui.