quarta-feira, 19 de setembro de 2012

O Evangelho da Esposa de Jesus

O Evangelho da Esposa de Jesus, assim Karen King, professora de Harvard, nomeou um suposto novo fragmento copta que ela mesmo tornou público na última terça-feira, em Roma, no Congresso Internacional de Estudos Coptas. Como não lembrar do Evangelho de Judas, cuja existência foi anunciada no mesmo Congresso, em 2004, por Rodolphe Kasser.
Ainda não conheço as medidas exatas do fragmento, mas uma foto dele pode ser visualizada numa reportagem do New York Times. O fragmento em questão tem oito linhas e nele podem ser lidas partes de frases atribuídas a Jesus potencialmente polêmicas como "Jesus lhes disse: 'minha esposa...'" e "ela será capaz de ser minha discípula...".

São muitas as questões a serem consideradas. Comecemos pelo anúncio feito por Karen King e a questão relativa ao fato de o manuscrito ser uma falsificação ou não. 

Dois estudiosos que eu conheço muito bem, meu orientador ,Louis Painchaud, e o meu colega, Alin Suciu, estão em Roma no Congresso de Estudos Coptas e tiveram a oportunidade de assistir ao vivo à conferência da professora King. O professor Painchaud disse hoje de manha, via facebook, que King não pôde mostrar fotos do dito fragmento durante a conferência por problemas técnicos; segundo ela, seu computador havia pifado durante o vôo que a levou a Roma. Obviamente, a primeira reação dos estudiosos presentes foi pedir para ver o fragmento, o que só se tornou possível depois da conferência. A reação dos estudiosos presentes foi mais ou menos a mesma: 
1- A caligrafia é extremamente peculiar e nenhum dos presentes jamais tinha visto esse tipo de escritura e letra num manuscrito copta;
2- A forma do fragmento e suas bordas não correspondem ao que se vê normalmente em um fragmento copta antigo; as bordas são muito regulares, o "corte" muito reto.
Vejam abaixo fotos de alguns fragmentos do Codex I de Nag Hammadi, do séc. IV. Comparem com a foto da reportagem do NY Times e notem as diferenças. Vejam como as bordas dos fragmentos de Nag Hammadi são muito mais irregulares.



3- O conteúdo do suposto fragmento parece ter sido feito sob medida, para satisfazer os anseios do grande público sobre questões que já renderam muita discussão, livros e dinheiro, a suposta relação conjugal entre Maria Madalena e Jesus, e a possibilidade de terem existido "discípulas" de Cristo. É interessante notar também que a própria Karen King é responsável por várias pesquisas, estudos e livros relativos aos temas citados; ela escreveu muito sobre Maria Madalena e sobre o papel da mulher no cristianismo antigo. Seria, portanto, uma grande coincidência que esse fragmento tenha caído justo nas mãos dela. 
4- Ainda segundo o professor Painchaud, o que circulava nos corredores do Congresso Copta sobre o tal fragmento, e que definia bem a posição dos estudiosos presentes, resumia-se à seguinte frase: "It is a fake", em português, algo como "É uma falsificação".

Ainda é muito cedo para definir se de fato é uma falsificação ou não; de qualquer modo, se for esse o caso, eu arriscaria dizer, em conformidade com o que se anda dizendo no Congresso, que King não seria a autora de tal falsificação, mas a vítima (na linguagem de internet, poder-se-ia dizer que ela foi "trolada"). Como não lembrar do famoso caso do Evangelho Secreto de Marcos, que acabou com a reputação de Morton Smith.

King ainda teria sugerido que o fragmento dataria do séc. IV. Ora, é praticamente impossível datar com tanta precisão um fragmento copta. A maneira mais segura de datar um manuscrito antigo ainda é a paleografia; infelizmente, a  paleografia copta ainda é muito incipiente, e a menos que o fragmento, o manuscrito ou o codex contenham uma data escrita pelo escriba, a datação é especulativa. Portanto, nada, absolutamente nada nesse momento, pode garantir que o fragmento seja efetivamente do séc. IV. Isso se considerarmos que ele é verdadeiro, o que, pelo visto, não  é tão evidente assim.

Alguns meios de comunicação brasileiros publicaram reportagens sobre o fragmento dizendo que se tratava de um manuscrito do séc. II. Seguem os links abaixo:
http://noticias.uol.com.br/ciencia/ultimas-noticias/reuters/2012/09/18/texto-em-pedaco-de-papiro-sugere-que-jesus-foi-casado.htm

http://noticias.terra.com.br/ciencia/noticias/0,,OI6163867-EI8147,00-Fragmento+de+texto+do+seculo+II+fala+em+mulher+de+Jesus.html

Ora, a língua copta escrita não existia antes do fim do séc. III, logo, qualquer manuscrito ou fragmento em copta é necessariamente posterior a essa data. No caso do primeiro artigo, o do portal UOL, eles corrigiram a suposta data depois de um comentário meu.

Muitos estão me perguntando sobre o conteúdo do fragmento, se isso mudaria algo nas crenças sobre Jesus. É claro que não. Mesmo se considerarmos que o fragmento é verdadeiro, trata-se de um texto tardio que não pode, de maneira alguma, ser considerado fonte fidedigna para o estudo de Jesus, sua época e dos personagens que o cercaram. Trata-se, no entanto e provavelmente, de uma tradição tardia acerca de Jesus. Mas é sempre difícil explicar isso às pessoas. Como diz o velho ditado, " a primeira impressão é a que fica". Portanto, pouco importa o que seja dito pelos especialistas - e digo isso por experiência própria, vivida nos casos do Código da Vinci e do Evangelho de Judas - a polêmica está lançada e a maioria das pessoas já tem idéia formada sobre o assunto.
Por fim, vale lembrar que a idéia de uma esposa de Jesus não é inédita na tradição apócrifa copta; outros textos, como o Evangelho de Filipe falam do assunto. Mas essa relação conjugal é sempre apresentada como uma relação espiritual, nunca como uma relação humana ou carnal. Mais detalhes sobre essa questão podem ser visualizados numa conferência que apresentei em 2006.

Enfim, muita água ainda vai passar por debaixo dessa ponte. Ainda vamos ouvir muita coisa sobre esse tal fragmento. Ficarei atento e assim que as novidades forem surgindo, eu posto aqui no blog. 


8 comentários:

Rodrigo Ribeiro disse...

Realmente esclarecedor, Julio. Muito obrigado por esse ótimo post.

Bruno Antunes de Cerqueira disse...

Prezado Julio Cesar Chaves,

Excelente artigo!

Gostaria que ficássemos em contato.

Indico-lhe meu blog pessoal —www.brunodecerqueira.blogspot.com — e o blog da instituição que mantenho com vários amigos: www.idisabel.wordpress.com.

Cristãs saudações.

BRUNO

p.s. vc tem um homônimo na Irmandade de Nossa Senhora da Glória do Outeiro, do Rio de Janeiro...

João Pedro Strabelli disse...

Do jeito que esses comentários sem base sempre voltam, daqui alguns séculos, algum "estudioso" vai dizer que encontrou um fragmento do facebook dizendo que Jesus era casado.

Julio Cesar Dias Chaves disse...

Caro Rodrigo,

fico contente que o comentário tenha sido esclarecedor. O objetivo do blog é esse.

Grato pelo comentário

Julio Cesar Dias Chaves disse...

Caro Bruno,

fique à vontade para comentar no blog sempre que quiser.

Eu fiquei sabendo da existência do meu homônimo há alguns meses. Ele foi procurar o CV dele no site do CNPq e acabou descobrindo o meu. Ele me escreveu um e-mail, trocamos umas figurinhas e ele passou até a ser seguidor do meu blog.

Julio Cesar Dias Chaves disse...

Caro João,
é por isso que temos sempre de tomar cuidado com o que escrevemos nas redes sociais, rsrsrs.

André do Amaral disse...

Caro Julio,

VocÊ já acessou o site do projeto de pesquisa sobre o tal fragmento?

Pois aí vai: http://www.hds.harvard.edu/faculty-research/research-projects/the-gospel-of-jesuss-wife

Lá se diz que o suposto evangelho teria sido escrito na segunda metade do séc. II, por suas semelhanças com o Envangelho de Tomé, O Ev. de MAria e o Ev. de Felipe.
O fragmento é que seria do séc. IV.

O que acha? É possível?

Quero agradecer pela sua contribuição. Tem mt gente na paróquia perguntando sobre o assunto e vc me ajudou a alargar as idéias.

Abraço.

Julio Cesar Dias Chaves disse...

Caro André.

Há varias questões a serem respondidas na sua pergunta. De qualquer modo, para tal, é preciso considerar que o fragmento seja verdadeiro, que não seja uma falsificação moderna, o que fica cada vez mais difícil de ser sustentado. Ainda hoje vou escrever novamente sobre isso aqui no blog.

Enfim, a primeira questão diz respeito à datação. De fato, são duas coisas diferentes, a data do manuscrito e a data da redação original do texto. Ambas são praticamente impossíveis de serem determinadas, pelo menos no atual estágio das pesquisas.
Como eu disse no post, é praticamente impossível datar um fragmento copa tão pequeno, a menos que haja uma data escrita nele, o que não é o caso. A KAren King conhece o copta e sabe que não existem manuscritos nessa língua anteriores ao séc. IV. Portanto, ao dizer que o fragmento é do séc. IV, ela está tentando passar a imagem de que ele é o mais antigo possível; o impacto mediático é muito maior do que se ela dissesse que o fragmento é do séc. VI ou VII, por exemplo. Mas ao dizer que o fragmento é do séc. IV, ela não está fazendo nada mais do que especular (repito, isso se o fragmento não for falso).

Passemos à questão da datação da composição original: de fato, existem várias versões/traduções coptas de textos originalmente compostos em grego nos séculos II e III; os textos de Nag Hammadi são o exemplo mais conhecido. Portanto, existiria a possibilidade de o fragmento ser uma tradução/versão copta de um texto originalmente composto em grego no séc. II (mais uma vez, para tal possibilidade ser válida, seria necessário considerar que o fragmento não é uma falsificação moderna).
No entanto, o fragmento é tão pequeno e foi tão pouco estudado que tal possibilidade continuaria sendo apenas uma possibilidade. Não há como prová-la.
Como o prof. Funk disse ontem em uma entrevista, existem dezenas de fragmentos coptas assim, minúsculos, que dizem coisas difíceis de serem interpretadas exatamente por serem tão pequenos e estarem fora de contexto.
Ao falar de um original grego do séc. II, a King estava, mais uma vez, especulando.

Por fim, pelo que andei vendo, as semelhanças com outros textos coptas, principalmente o Evangelho de Tomé, são exatamente as evidências mais cabais de que se trata de uma falsificação. A pessoa que fez isso praticamente fez uma bricolagem de trechos do EvTomé. A semelhança é tanta que fica difícil acreditar no contrário.

Daqui a pouco escrevo no blog sobre isso.