terça-feira, 29 de janeiro de 2008

Onde estão os textos de Nag Hammadi?


A gente encontra cada bobagem na internet...
Parece que virou moda, principalmente depois do Código da Vinci, dizer que o Vaticano esconde manuscritos “apócrifos” antigos que revelariam a verdade sobre Jesus e que, consequentemente, acabariam com o domínio da Igreja. Já perdi a conta de quantas vezes li esse tipo de bobagem na internet.
Recentemente vi alguém falando algo desse tipo sobre os manuscritos de Nag Hammadi.
Mas enfim, para quem não sabe, ai vai a explicação.
Os manuscritos de Nag Hammadi foram descobertos em 1945 por 2 camponeses egípcios. Com exceção do codex I, que foi comercializado no mercado negro de antiguidades, tendo sido vendido à fundação Jung, o restante dos códices foi parar no Museu copta do Cairo ainda na década de 40. O primeiro codex chegou em 1946 e foi examinado pelo diretor do museu, Togo Mina e Jean Doresse. Em 1949, o governo egípcio expropriou os demais códices que estavam em território egípcio, entregando-os ao Museu Copta. O codex I, depois de publicado, voltou para o Egito e também se encontra no Museu Copta.
Em 1949, com a morte de Togo Mina, os manuscritos foram guardados numa mala onde ficaram até 1956, pois ninguém se interessou por eles. É preciso lembrar, porém, que esse foi um período conturbado da história do Egito; em 1947, o país enfrentou Israel em uma guerra; em 1952, passou por uma revolução que durou até o ano de 1954, com a abdicação do rei Faruk, e a proclamação da Republica Egípcia; a ainda, em 1956, o pais enfrentou Israel em uma nova guerra. Todos estes eventos retardaram de certa forma a publicação dos textos.
O fato é que os manuscritos de Nag Hammadi nunca estiveram em poder do Vaticano nem de nenhuma autoridade eclesiástica; estão no Museu Copta do Cairo até hoje, para quem quiser ver; eu mesmo os vi com meus próprios olhos no final de outubro de 2007.
Quem quiser ler mais pode ler o artigo de James Robinson “From the Cliff to Cairo”, ou então, um artigo que escrevi para revista Oracula:

http://www.oracula.com.br/numeros/022006/artigos/Artigo%20-%20Julio%20Cesar%20Dias%20Chaves.pdf


E na foto lá em cima, estamos o Renné, eu e o Michael observando o folio 23 do codex V de Nag Hammadi. Adivinhem onde? Não, não estávamos no Vaticano, estávamos no Museu copta do Cairo....

domingo, 27 de janeiro de 2008

A biblioteca de Nag Hammadi: uma coleção gnóstica?

Há pouco mais de sessenta anos, em 1945, um conjunto de códices de papiros com coberturas de couro era encontrado no alto - Egito, nas proximidades da cidade moderna de Nag Hammadi. A descoberta acidental propiciou uma quantidade considerável de fontes inéditas para o estudo do cristianismo primitivo e de algumas de suas manifestações marginais que, grosso modo, são conhecidas e denominadas hoje sob o rótulo de “gnosticismo”. São mais de cinqüenta textos de cunho religioso e filosófico divididos em treze códices - alguns textos se repetem, há, por exemplo, duas versões diferentes do texto conhecido como Eugnostos, uma no codex III e outra no codex V. Os códices datam do séc. IV, a língua é o copta, mas os textos foram muito provavelmente compostos em grego, em momentos anteriores ao séc. IV. O que se tem hoje é, portanto, um provável conjunto de traduções coptas de textos que foram compostos em grego - ou ainda, versões coptas feitas a partir de outras versões coptas que remontariam, em diferentes graus de transmissão, aos textos gregos. A cadeia de transmissão dos textos de Nag Hammadi é, portanto, extremamente complexa.
Estes originais gregos, no entanto, se perderam, com exceção de alguns escritos dos quais se possui ou o texto completo em grego ou fragmentos; caso, por exemplo, do fragmento da República de Platão no codex VI (588A-589B). Convencionou-se chamar o corpus literário em questão de Biblioteca Copta de Nag Hammadi (BCNH), nome que tem sido utilizado desde os primórdios de sua pesquisa e que permanece até hoje.
A BCNH é constituída por um número considerável de textos; ela pode ser contada entre as grandes descobertas arqueológicas do séc. XX. Como dito anteriormente, os textos da BCNH são traduções/versões coptas do séc. IV que remontariam a textos gregos compostos anteriormente, o que significaria, no caso específico de alguns escritos, na existência de testemunhos de tradições relativamente arcaicas sobre manifestações pouco conhecidas do cristianismo primitivo.
Muitos textos da BCNH contêm doutrinas semelhantes às denunciadas e condenadas por diversos heresiólogos dos primeiros séculos do cristianismo, notadamente Irineu de Lyon. Estas doutrinas são genericamente chamadas de gnosticismo, como dito anteriormente, um rótulo moderno para designar um conjunto de manifestações particulares do cristianismo primitivo. O fato é que a descoberta de um conjunto tão considerável de fontes ditas gnósticas chamou a atenção dos estudiosos. O que antes era conhecido quase que exclusivamente por meio de heresiólogos poderia então ser conhecido por meio de fontes primárias. A dita “doutrina gnóstica” poderia então ser entendida por meio das descrições de seus próprios adeptos e não necessariamente por meio de seus opositores. Tal fato fez com que se propagasse a idéia de que a BCNH seria uma coleção gnóstica, idéia que de certa forma, perdura até hoje em alguns meios não acadêmicos, como a imprensa, mas ainda em meios acadêmicos que se preocupam com estudos correlatos.
Mas a verdade é que a BCNH não pode ser rotulada como uma “coleção gnóstica”. Uma parte considerável dos textos encaixa-se no que se convencionou chamar de “gnosticismo”, ou seja, um sistema doutrinal que considera a existência de um Deus supremo e um inferior que seria o criador do mundo material. Mas muitos textos da BCNH não apresentam nenhum traço claro de “gnosticismo”; alguns textos renomados, como o evangelho de Tomé, por exemplo, já foram cotados como “gnósticos” pelo simples fato de fazerem parte da BCNH; no entanto, a leitura atenta do texto em questão não revela nenhuma característica peculiar ao gnosticismo, mas diversos elementos próprios a diversos grupos dos primórdios do cristianismo. O evangelho de Tomé não é um texto gnóstico, e foi, muito provavelmente, produzido num ambiente siríaco encrático, talvez até monástico, onde a figura de Tomé era renomada.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2008

A edição crítica do Evangelho de Judas

Depois do estardalhaço mediático na Páscoa de 2006, com a publicação de uma tradução em inglês (e em outras línguas modernas) e um comentário do Evangelho de Judas pela National Geographic, a edição crítica do codex Tchacos saiu no meio do ano de 2007.
Codex Tchacos? Sim, codex Tchacos é o nome do corpus literário ao qual pertence o Evangelho de Judas.
Não é a toa que a National Geographic deu à edição crítica o título "The Gospel of Judas, Critical Edition: Together with the Letter of Peter to Phillip, James, and a Book of Allogenes from Codex Tchacos"; “The Gospel of Judas” vem com letras enormes, e o resto com letras menorzinhas. Mas enfim, é até compreensível, afinal, ninguém sabe o que é codex Tchacos, mas do Evangelho de Judas todo mundo já ouviu falar. Esses dias mesmo, o irmão de um amigo meu veio me perguntar se o Evangelho de Judas estava mesmo escrito em aramaico.....
Não! O Evangelho de Judas não está escrito em aramaico, mas sim em copta, a língua do Egito na época romana, entre os sécs. III e VII aproximadamente. Mas o original foi muito provavelmente composto em grego, da segunda metade do séc. II em diante.
Mas voltando à edição crítica, devo dizer que ela ficou boa e barata. Comprei na Amazon.ca por 20 dólares canadenses.
Os fac-símiles das páginas do codex Tchacos ficaram pequenos, mas a qualidade das fotos é boa. E mesmo após a publicação, o prof, Gregor Wurts, um dos responsáveis pela edição, continuou a achar locais para encaixar os fragmentos. Ele mandou um e-mail em agosto para o Prof. Wolf-Peter Funk, aqui da Université Laval, com alguns fragmentos recolocados.
Mas o que mais chama a atenção é que a polemica continua. A discussão sobre o Judas do Evangelho de Judas, se ele seria um personagem bom ou mau, discípulo modelo de Cristo, ou o mesmo traidor de sempre continua. A edição crítica mudou a tradução de algumas passagens cruciais (em breve dou mais detalhes e esclareço tudo isso), mas Meyer, Kasser e Wurts (mas principalmente o Meyer) continuam defendendo que o Judas do Evangelho de Judas é apresentado como herói, modelo, o único que entendeu Cristo e o entregou para livrá-lo de seu envelope carnal, a pedido do próprio – alias se alguém me mostrar o trecho do texto no qual Jesus pede a Judas que o entregue, eu mudo de nome; mas tem de ser uma tradução séria, e não essas traduções do Jean-Yves Leloup que circulam por ai.
De acordo com a interpretação de Meyer & cia. estão, entre outros E. Pagels, B. Erhman e K. King, autores que nos últimos tempos têm se destacado mais por obras de vulgarização que lhes renderam milhares de dólares do que por obras científicas renomadas.
Do outro lado estão estudiosos menos conhecidos do grande público, mas que gozam de muito respeito e reputação nos meios acadêmicos, como L. Painchaud, J Turner, A. deKonick e B. Pearson. E eu concordo com eles. Para mim, basta ler o texto com atenção e conhecer um pouco do contexto do cristianismo primitivo e do que se convencionou chamar de “gnosticismo” para perceber que o Evangelho de Judas não apresenta um Judas herói, muito pelo contrário, apresenta o traidor de sempre que trai Jesus e é culpado pelo maior sacrifício de todos os tempos, o do próprio filho de Deus. Mas enfim, o Judas traidor já não chama mais a atenção de ninguém, né?! O povo quer algo de novo, de interessante, de polêmico.
Não vou entrar em mais detalhes, pois estou preparando um artigo em português sobre o assunto. Mas tenho de agradecer ao meu orientador, L. Painchaud e a todos os meus professores e colegas da Université Laval; passamos muito tempo discutindo detalhadamente o texto do Evangelho de Judas. E para quem não consegue esperar pelo artigo, sugiro que leia a edição de outubro de 2006 da Laval théologique et philosophique.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

The Nordic Nag Hammadi and Gnosticism Network

Entre os dias 28 de outubro e 4 de novembro de 2007, ocorreu no Shephard Hotel, Cairo, Egito, o chamado “Nordic Nag Hammadi and Gnosticism Network”. Trata-se de um seminário anual realizado pela associação nórdica de estudos coptas, formada pelos estudiosos da Dinamarca, Finlândia, Suécia e Noruega. O seminário é organizado por professores desses países, principalmente o prof. norueguês Einar Thomassen, para quem não conhece, um das referências em valentianismo.
O seminário funciona da seguinte maneira: um texto copta é escolhido para ser traduzido; de manha lê-se o texto traduzindo-o, os participantes têm de lê-lo e traduzí-lo no decorrer do seminário; ocorrem também discussões filológicas em relação ao texto, propondo-se alternativas para o preenchimento de lacunas etc. Ocorrem também muitas discussões sobre o conteúdo e interpretação de passagens obscuras e do sentido e objetivo geral do texto. Em 2006, o texto discutido foi o recém publicado evangelho de Judas. Em 2007, discutiu-se a versão do primeiro apocalipse de Tiago do codex Tchacos, o mesmo codex do evangelho de Judas.
Durante a tarde, em geral, deixa-se a tradução do texto de lado e os participantes apresentam comunicações científicas. Eu tive a oportunidade de apresentar uma comunicação sobre o codex V de Nag Hammadi e sua relação com a literatura copta do séc. IV. Para quem se interessar, o texto da comunicação está disponível no site do Programa de Estudos Judaico-helenísticos, no link abaixo:

http://www.pej-unb.org/downloads/paper_julio_nh_gn_2007.pdf


Em 2008, o NNHGN ocorrerá em Helsinki, Finlândia.