A fome do início do séc. XIV e a Peste Negra.
Versão em texto da aula de Baixa Idade Média
Introdução
A Peste Negra começou a afetar o velho
mundo (Europa e Ásia) principalmente no séc. XIV, ou seja, já rumando para os
momentos finais do período que nos interessa aqui, a Baixa Idade Média. Junto
com a “gripe espanhola”, a Peste Negra – também conhecida como “Peste Bubônica”
é a mais famosa epidemia da história da humanidade. Aliás, a própria existência
dessas duas epidemias demonstra que o que estamos vivendo agora – a pandemia da
COVID-19 – não é nenhuma novidade na história da humanidade. A diferença de
hoje é que as pessoas podem viajar de um continente a outro em algumas horas, o
que aumenta a capacidade e velocidade de expansão das doenças e faz com que
elas atinjam em alguns meses ou até semanas uma escala global. Além disso,
nunca tanta gente viveu aglomerada em cidades, o que também facilita a
contaminação.
Por outro lado, a ciência e a medicina de
hoje são muito mais avançadas do que nos séculos anteriores, e permitem ações
de prevenção e combate às epidemias que antes sequer poderiam ser cogitadas. Por
exemplo, as noções de higiene e sanitárias que começam a surgir no séc. XIX
ajudam muito na contenção da expansão das epidemias. Antes disso, as pessoas
não sabiam exatamente como acontecia os contágios das doenças e a prevenção
era, portanto, praticamente inexistente. Como as pessoas não viam os vírus e
bactérias, elas sequer sabiam que esses organismos existiam, logo, sequer
cogitavam a adoção de medias simples que nos ajudam a prevenir o contágio hoje,
como lavar as mãos e passar álcool gel.
Além disso, em muitos momentos da história
da humanidade, principalmente nos ambientes urbanos, não existia qualquer
indício daquilo que consideramos hoje saneamento básico e muito menos água
potável. As casas ficavam muito perto uma das outras, tento ruas e vielas pouco
espaçosas e com pouca ventilação; principalmente nos locais mais pobres, não
havia sequer calçamento. Não havia rede de recolhimento e tratamento de esgoto,
era tudo a céu aberto; e as pessoas não podiam tomar banho com frequência. Os
romanos foram precursores em algumas noções de saneamento, já que possuíam
latrinas e banhos públicos; mas, mesmo assim, algo ainda longe das noções que
temos hoje de higiene e saneamento básico.
Todas essas condições precárias eram
altamente favoráveis para a proliferação de vírus e bactérias, além de serem
favoráveis ainda à proliferação de parasitas e hospedeiros. Esse último aspecto
foi particularmente importante para a expansão e mortalidade da Peste Negra, já
que ela era basicamente transmitida por pulgas de ratos. Obviamente, em
ambientes urbanos tão insalubres e com tanta matéria orgânica em decomposição,
os ratos se proliferavam à vontade. E essa era a grande dificuldade de se
combater a proliferação da própria Peste Negra.
Mas, como dito anteriormente, outras
grandes epidemias assolaram a humanidade ao longo da história – ou povos
específicos – além das conhecidas Peste Negra e Gripe Espanhola. Na
Antiguidade, por exemplo, teve lugar a chamada “Praga Antonina” ou “Peste
Antonina” – que recebeu esse nome por ter acometido o Império Romano durante a
dinastia dos antoninos. É provável que os imperadores Lucio Vero (+169) e Marco
Aurélio (+180) tenham sido vítimas mortais dessa praga. Os sintomas dessa
doença eram febre, erupções cutâneas e diarreia. Os relatos de alguns
historiadores da Antiguidade sobre essa peste servem como fontes primárias;
dentre eles, pode-se destacar Aminiano Marcelino, Dião Cássio, Eutrópio e
Cláudio Galeno. Calcula-se que ela tenha feito cerca de 5 milhões de vítimas
mortais, com uma taxa de mortalidade em torno de 25%; Dião Cássio dizia que só
em Roma, morriam cerca de 2 mil pessoas por dia. O historiador Rafe de Crespgny[1] estima que a peste antonina
tenha se originado na China, no séc. II a.C., durante a dinastia Han. É
provável que tenha entrado em Roma por meio do exército, durante o cerco a
Selêucia - entre 165-166 – se espalhando depois pelas legiões ao longo do Rio
Reno e depois por todo o império. É bastante provável que essa peste tenha sido
responsável pelo enfraquecimento do exército romano e do próprio Império,
estando na origem da crise que iria se acentuar no século seguinte.
Na Antiguidade Tardia, durante o reinado do
Imperador Justiniano (527 a 565), o Império Bizantino também foi assolado por
uma peste cujos sintomas se assemelhavam aos da Peste Negra. É possível,
portanto, que a peste justiniana tenha sido a primeira onda da Peste Bubônica. A
epidemia teve seu auge nos anos 541-544. Apesar de ter muito provavelmente
surgido na China, teria chegado ao Império Bizantino vindo com as pulgas dos
ratos que entravam nas embarcações de grãos vindos do Egito e eram distribuídos
em vários locais do império. Era transmitida pelas pulgas dos ratos, que
continham a bactéria Yersinia pestis.
Calcula-se que tal peste tenha sido responsável por matar cerca da metade da
população da Europa; fala-se em dezenas de milhões de mortos e algumas
estimativas chegam até a 100 milhões. Tanto no caso da Peste antonina quanto da
peste justiniana, esses números são estimativas e não passam de estimativas.
Os antecedentes da Peste
Negra: a fome de 1315
Ao final do séc. XIII e início do séc.
XIV, a expansão e renascimentos comercial e urbano começavam a dar os primeiros
sinais de desaceleração e estagnação. Depois do apogeu do séc. XIII: o século
de grandes santos e personalidades (como o Papa Inocêncio III, e os santos
Tomas de Aquino, Luís IX, Francisco e Domingos de Gusmão), das universidades,
da filosofia tomista, do renascimento das cidades e do comércio; veio um
período de estagnação. Nas palavras de Henri Pirenne “É também o momento em que
a população deixa de crescer, e essa interrupção constitui o sintoma de maior
significação do estado de uma sociedade estabilizada e de uma evolução que
chegou ao apogeu”[2].
A partir de 1315, uma crise de alimentos
acometeu a Europa e causou uma grande fome. Tal crise durou até o ano de 1317. Pirenne
cita o exemplo da cidade belga de Ypres – na região de Flanders – onde o
magistrado comunal mandou sepultar 2794 cadáveres, entre os meses de maio e
outubro de 1316. Se levarmos em conta que a população da cidade girava em torno
de 20 mil pessoas, nesse intervalo de 6 meses, mais de 10% da população morreu.
A grande fome foi causada por chuvas acima da média na primavera e verão de
1315; as fortes chuvas mantiveram as temperaturas baixas e impediram que as sementes
germinassem, e isso afetou gravemente as colheitas, que foram muito ruins. A
escassez de grãos fez com que os preços subissem.
Diante da escassez crônica de alimentos,
buscou-se alternativas que só pioraram a situação depois: matou-se para comer animais
de reprodução e se consumiram os grãos reservados para o plantio dos anos
seguintes. Crianças foram abandonadas – realidade ilustrada, por exemplo na estória
de João e Maria – e negava-se comida
aos idosos para que os jovens tivessem o que comer e se preservasse as gerações
futuras. Há ainda crônicas que relatam episódios de canibalismo. Toda a
população sofreu, mas os camponeses (cerca de 90% da população), foi o segmento
que mais padeceu. A crise alimentar atingiu principalmente as regiões do norte
da Europa, como a atual Grã-Bretanha, o Sacro-Império, o norte da França,
Escandinávia e os Países Baixos. E atingiu indiretamente outras áreas da
Europa. Mas outras regiões foram indiretamente afetadas por fazerem fronteiras
com esses países.
As condições meteorológicas começaram a
voltar ao normal em 1317. Mas a reserva de grãos para o plantio era tão baixa
(quase inexistente) que a Europa só pode voltar aos níveis normais de produção
de alimentos por volta de 1325. O problema é que essa Europa já enfraquecida
estava prestes a enfrentar uma crise ainda maior, que, cerca de 30 anos mais
tarde, entre 1347 e 1350, iria ceifar cerca de 1/3 de sua população.
A Peste Negra
A Pandemia da Peste Negra foi a mais fatal
da História e atingiu não somente a Europa, mas também a Ásia; estima-se que
juntando os dois continentes a pandemia em questão tenha causado a morte de 75
a 200 milhões de pessoas. Como visto, a Peste Negra chegou a uma Europa que já
estava enfraquecida e debilitada: além da grande fome de 1315-1317, a população
de modo geral era subnutrida: não havia grande variedade de alimentos e,
obviamente, nenhum tipo de controle nutricional. As condições de vida eram
precárias e a esperança de vida geralmente não passava dos 40 anos.
Além disso, o séc. XIV foi marcado por
muitas guerras entre os países, reinos, ducados e feudos da Europa. Pirenne,
por exemplo diz que: “A essas calamidades devidas à natureza, a política
acrescentou outras de idêntica crueldade. A Itália, durante todo o século, foi
dividida por lutas civis. A Alemanha foi presa de uma anarquia política
permanente. A Guerra dos Cem Anos, enfim, e principalmente, arruína a França e
esgota a Inglaterra”[3]. De fato, a Peste Negra
chega a seu pico durante a primeira fase da Guerra dos Anos que se aconteceu
entre 1337-1350.
Após o séc. XIV, a Peste Negra não chegou
a desaparecer na Europa completamente; ela ia e voltava em ondas epidêmicas,
menos fortes, no entanto. O que acontecia é que a peste acabava por contaminar
a maioria da população; os que não morriam ficavam imunes; depois de algumas
gerações, os indivíduos imunes já não existiam mais e a peste voltava a
aparecer numa nova onda epidêmica. A Peste só chegou a desaparecer no início do
séc. XIX, quando o problema passou a ser a cólera. Os sintomas eram: tosse com
sangue, dores musculares, principalmente no abdômen, inchaço dos gânglios
linfáticos (que causavam bolas e manchas na pele, muitas vezes de cor escura),
principalmente na virilha e axilas, febre e calafrios, dores de cabeça, náuseas
e vômitos, dentre outras coisas.
O que causa a doença é a bactéria Yersinia pestis; o hospedeiro é uma
espécie de pulga de roedores (Xenopsylla
cheopis); geralmente, os roedores são geralmente ratos pretos indianos (Rattus rattus); mas a doença pode
ocorrer por meio de outros roedores; há relatos – raros – de seres humanos que
pegaram a doença por terem contato direto com o sangue de roedores silvestres. O
rato preto – hoje raro – não foi o responsável por trazer a peste para a
Europa, mas como ele tinha hábitos naturais mais dóceis, ele não tinha medo de
se aproximar dos humanos. A partir do séc. XVIII, os ratos pretos foram sendo
suplantados pelos ratos cinzentos (Rattus
norvegicus), mais ariscos e que se aproximam menos dos humanos; isso
provavelmente ajudou a peste a desaparecer da Europa.
As
origens
A Peste Negra provavelmente surgiu nas planícies
áridas da Ásia, na China. Por meio da rota da Seda, ela foi se difundindo até
chegar a região da Crimeia, atual Rússia/Ucrânia.Foi provavelmente trazida para
a Europa pelos mongóis, que sob o comando de Gêngis Khan estabeleceram um
império que ia desde a Manchuria, na China, até a Ucrânia. Por meio da rota da
Seda, a onda epidêmica se espalhou de maneira generalizada e rapidamente, da
Ásia Central até a Europa, passando pelo Oriente Médio.
Durante o cerco mongol da colônia genovesa
de Caffa – no séc. XIV – foi que a epidemia entrou na Europa: após 2 anos de
cerco, os soldados mongóis começaram a ser contaminados pela peste e os
cadáveres dos mortos foram lançados para dentro das muralhas de Caffa por meio
de catapultas. A epidemia tomou conta da cidade e se diz que foram tantos
óbitos que os corpos precisavam ser queimados, por não haver como enterrar a
todos. Diante da situação catastrófica, vários genoveses fugiram de navio de
Caffa, muitos deles já infectados, morreram no caminho e os navios ficaram
cheios de cadáveres. Além disso, ratos pretos também entravam nesses navios e
acabavam fazendo a viagem.
Quando os navios aportavam em alguma
cidade, os ratos escapavam e se espalhavam pela própria cidade, cuja população
passava a ficar infectada. Isso ajuda a explicar porque mesmo as cidades que
não permitiam que os marinheiros dos navios infectados saíssem dos navios foram
infectadas. Com o tempo, as pulgas infectadas dos ratos que saiam dos navios
acabavam infectado também os ratos locais, e isso aumentava a epidemia. O
primeiro porto onde os navios genoveses aportaram foi Constantinopla, em maio
de 1347; logo depois rumaram para a Itália: Messina (setembro) e Gênova (novembro).
E no mesmo mês, chegaram ao sul da França.
A partir dessas localidades
mediterrânicas, a epidemia se espalha por toda a costa do mar Mediterrâneo em
cerca de 1 ano. No ano seguinte chega à Grã-Bretanha e Portugal e 3 anos
depois, 1350, já tinha atingido a Escandinávia. Algumas cidades e regiões foram
inexplicavelmente poupadas, como Milão e a Polônia.
A quantidade de mortes por causa da peste
– num curto período de tempo – foi tão grande que muitas vezes não se conseguia
sepultar todo mundo. Foram necessárias as construções de novos cemitérios. Alguns
autores nos deixaram relatos sobre a peste, dentre eles, Giovanni Boccacio e
Guy de Chauliac, médico do Papa Clemente V. Na época da primeira onda
epidêmica, o papado estava instalado em Avignon, na França, no episódio que
ficou conhecido como “Exílio em Avignon” (1309-1377), causado em grande medida
pelas tentativas de intervenção de Felipe, o Belo, nos assuntos da Igreja.
Durante o período da primeira onda epidêmica, o Papa foi Bento XII (1342-1352) destacou-se
por prestar socorro físico e espiritual aos doentes da peste principalmente em
Avignon. Ele também se destacou na proteção aos judeus, injustamente acusados
de serem os responsáveis pela peste.
Os
médicos
Um personagem ao mesmo tempo conhecido e lendário
da Peste Negra foi o médico. Obviamente, os médicos não podiam fazer muita
coisa nem na prevenção nem no tratamento da doença, limitados pelo conhecimento
e tecnologia da época. Na maioria das vezes, provavelmente apenas prestavam
cuidados paliativos e de alívio aos doentes e lidavam com os corpos dos mortos.
Mesmo assim, eram heroicos e se expunham ao contato com os infectados, mesmo
sem saber direito como se dava a infecção. Adotavam roupas, máscaras e longas
facas, que usavam para cortas os bulbões linfáticos e aliviar dores. E também
bastões, para revirar os corpos e evitar contato direto com eles. No entanto –
ao contrário do que muitos pensam – aquela famosa e mórbida vestimenta negra
com a máscara com o bico semelhante ao de um corvo não existia e não foi usada
na primeira e mais famosa onda epidêmica da Peste Negra, a do séc. XIV. Aquela
vestimenta e máscara só surgiram em 1619, inventadas pelo francês Charles
Delorme, médico da família Medici.