sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

Versão escrita da aula sobre as origens do Sacro Império Romano-Germânico que ministrei essa semana na disciplina Baixa Idade Média, na UPIS Faculdades Integradas.  


As Origens do Sacro Império Romano-Germânico

 

Introdução

Ø    A partir mais ou menos do séc. XI, ou seja, a partir do início do período que chamamos de Baixa Idade Média, o Sacro Império Romano-Germânico passa a ser um dos protagonistas da história, juntamente com o Islã, a Igreja e os reinos da França e da Inglaterra. O seu papel político e cultural, bem como suas relações com a Igreja – nem sempre pacíficas – são de fundamental importância para o entendimento da história dessa segunda parte da Idade Média. Na Baixa Idade Média, passa-se a falar, portanto, dos 3 grandes reinos católicos: a França, a Inglaterra e o Sacro Império Romano Germânico, e, respectivamente, dos 3 grandes príncipes católicos.

Ø    As origens do Sacro Império Romano-Germânico estão ligadas à dinastia carolíngia e ao fim do próprio Império Carolíngio. O fim do Império Carolíngio culmina a médio prazo com o surgimento do Reino da França e do próprio Sacro Império Romano-Germânico. Do ponto de vista político, econômico e social, o Sacro Império Romano-Germânico funcionava de acordo com a lógica do vínculo feudal. Ou seja, havia uma nobreza dividida em vários níveis e graus, com suas terras e domínios, vinculadas umas às outras por meio do vínculo de fidelidade de suserania/vassalagem. O imperador do Sacro Império Romano-Germânico, portanto, apesar do título, estava longe de ter poderes absolutos. Sendo ele um nobre dentro desse teatro do vínculo feudal, a eficácia do seu título de imperador dependia dos vínculos típicos do sistema; e, como veremos, o imperador era eleito pelos demais nobres com direito a voto.

Assim sendo, não havia poder absoluto, nem centralização política; o poder estava fragmentado entre a nobreza. É como se o Sacro Império Romano-Germânico fosse uma espécie de confederação de vários reinos, principados, condados, marcas, etc, unidos simbolicamente sob a égide do imperador. Houve ao menos um caso no qual o Imperador chegou a ser destronado pela nobreza, inclusive: Henrique IV, por conta de sua disputa com o Papa Gregório VII.

O Sacro Império Romano-Germânico foi oficialmente fundado em 962 - por Otão I – e oficial e definitivamente dissolvido em 1806, durante a Era Napoleônica.  Durante todo esse tempo, a lógica do vínculo feudal e da fragmentação do poder permaneceu ativa – em menor ou maior grau – não havendo, portanto, uma efetiva centralização de poder. Isso diferencia o Sacro Império Romano-Germânico dos outros 2 grandes reinos católicos da Baixa Idade Méida, a Inglaterra e a França. 

Ao final da Baixa Idade Média, principalmente a partir do séc. XIV, Inglaterra e França começaram a passar por um processo de enfraquecimento do sistema feudal que, do ponto de vista político, culminou com o surgimento dos Estados-nação e das monarquias absolutistas da França e Inglaterra. Juntamente com Espanha e Portugal, que também surgem como reinos na Baixa Idde Média, Inglaterra e França são as grandes monarquias absolutistas da Idade Moderna. Deve-se frisar, no entanto, que o processo de formação dos reinos de Portugal e Espanha foi diferente, mas isso é assunto para outra aula.

Ø    Portanto, diferentemente dos casos de Inglaterra e França, onde o sistema feudal entrou em declínio, dando lugar à centralização do poder, no Sacro Império Romano-Germânico, o poder permaneceu fragmentado ao longo de toda a Idade Moderna, não havendo condições para a formação de um Estado-nação nos moldes típicos de uma monarquia absolutista. Posto isso, cabe dizer que o Sacro Império Romano-Germânico seria o prelúdio do que viria a ser a moderna Alemanha; mas por conta dessas características políticas e da fragmentação do poder, a Alemanha como país propriamente dito surge somente no séc. XIX, por meio do processo conhecido como “Unificação da Alemanha”, oficializado em janeiro de 1871. 

   Processo semelhante ocorreu na Itália; a Itália propriamente dita, como país e Estado, só surge no séc. XIX, por meio do processo conhecido como “Unificação da Itália”, encabeçado por Vitorio Emmanuelle II, até então, rei da Sardenha, e, a partir de 1861, (ano em que o processo de unificação começa) rei da Itália. Antes disso, a Itália como país propriamente dito não existia; o que existia era um conjunto de pequenos reinos, principados, repúblicas e cidades-estados independentes ou atreladas a algum outro Estado.  

Ø  Voltando ao caso do Sacro Império Romano-Germânico, é bastante comum falar-se em “Alemanha” antes da unificação do séc. XIX. Mas se trata apenas de uma figura de linguagem. Muitas personalidades históricas são tidas como “alemãs”, mesmo antes da existência oficial da Alemanha, por terem nascido em territórios que faziam parte do Sacro Império Romano-Germânico e que partilhavam dessa cultura germânica e que viriam a fazer parte da futura Alemanha. Por exemplo, o músico Johan Sebastian Bach é tido como alemão, mas, do ponto de vista político, seria mais preciso dizer que ele nasceu no principado de Eisenach. Bethoven nasceu na Colônia. Karl Marx nasceu na Renânia. Apenas para citar alguns exemplos. 

Ø    Enfim, se por um lado, houve na Inglaterra e França um processo de enfraquecimento político do sistema feudal – que culminou com o absolutismo – no Sacro Império Romano-Germânico aconteceu o contrário, e o poder político continuou fragmentado. Apesar da imensa quantidade de pequenos territórios feudais como principados, ducados, marcas e condados que formavam o SIRG, pode-se destacar como principais os reinos da Alemanha, Boêmia, Borgonha e o reino itálico.

Sacro Império Romano-Germânico durante a dinastia Hoheustafen, sécs. XII- XIII
Nota-se a quantidade de territórios que formam o conjunto do Império


O Sacro Império Romano-Germânico e a Igreja

Ø    Os domínios do Sacro Império Romano-Germânico se estendiam até o Sul e faziam fronteira com os territórios do que seria hoje a Itália; em vários momentos de sua história, o Sacro Império Romano-Germânico chegou a ter territórios vassalos na Itália, chegando mesmo a invadir outros desses territórios. O próprio reino da Itália, ao norte da península itálica, foi um dos reinos mais importantes do Sacro Império Romano-Germânico. De modo prático, o norte da Península Itálica ao longo da Baixa Idade Média sempre esteve ou sob a tutela ou sob o domínio do Sacro Império Romano-Germânico.

Ø    Essa proximidade e influência faziam com que o Sacro Império Romano-Germânico estivesse em constante contato com os territórios pontifícios e, consequentemente, com o Papado. Era um contato muitas vezes mais constante e influente que o dos demais reinos católicos, Inglaterra, França e, posteriormente, Espanha e Portugal. Assim sendo, a influência – e até mesmo as tentativas de ingerência – do Sacro Império Romano-Germânico e de alguns de seus imperadores nos assuntos eclesiásticos ao longo da Baixa Idade Média não foi pequena. 

     Essa influência e as tentativas de ingerência nem sempre eram recebidas pelo Papado e pela Igreja de modo pacífico. Em vários momentos, a Baixa Idade Média testemunhou embates entre o Sacro Império Romano-Germânico – principalmente na pessoa do imperador – e a Igreja – principalmente na pessoa do Papa. O auge desses embates foi a chamada “controvérsia das investiduras”, que envolvia as tentativas de nobres do Sacro Império Romano-Germânico e do Imperador de nomear bispos e abades à revelia da Igreja e até de influenciar e chancelar a escolha de Papas. O clímax dessa disputa opôs o Papa São Gregório VII e o Imperador Henrique IV, que chegou a ser excomungado pelo próprio Papa.   

A ação de Gregório VII diante das tentativas de ingerência do Sacro Império Romano-Germânico constituíram um dos aspectos mais importantes de um processo reformador levado a cabo pela Igreja na Baixa Idade Média. Esse processo ficou conhecido como Reforma Gregoriana. Em outros momentos, a proximidade gerou relações mais amistosas entre o Papado e o Sacro Império Romano-Germânico, como no caso de algumas Cruzadas ou na criação do Tribunal do Santo Ofício visando o combate a heresias.

As Origens do Sacro Império Romano-Germânico

Ø   As origens do Sacro Império Romano-Germânico encontram-se no fim do Império Carolíngio e na famosa Partilha ou Tratado de Verdun (843). Após o reinado de Luís, o Piedoso (840), ocorreu uma crise sucessória, que envolveu os membros da dinastia carolíngia e, consequentemente, os filhos do próprio Luís, netos de Carlos Magno. Lotário I, filho mais velho de Luís, reivindicou o controle de todo o Império. No entanto, os irmãos de Lotário – Luís, o Germânico e Carlos, o Calvo – não aceitaram a situação e uma guerra sucessória começou.

A crise foi resolvida com o Tratado de Verdun, que dividiu o Império entre os 3 descendentes de Luís, o Piedoso e pretendentes ao trono: Carlos, o Calvo, ficou com a parte Ocidental do Império, o que compreendia todas as terras a Oeste do Reno; à época, essas terras receberam o nome de Francia Ocidental, e seriam o prelúdio do reino da França. Paralelamente, Pepino II de Aquitânia, neto de Luís, o Piedoso e filho do falecido Pepino I de Aquitânia ficou com o reino da Aquitânia, vassalo de Carlos, o Calvo.  Lotário ficou com a parte central do Império, que incluía os territórios ao norte da Itália, Países Baixos, Alsácia, Lorena, Borgonha e Provença. Esse conjunto de territórios foi chamado de Francia Central. Por ser o filho mais velho de Luís, o Piedoso, Lotário conservou o título de Imperador, que mais tarde seria reivindicado pelos imperadores do Sacro Império Romano-GermânicoLuís, o Germânico, ficou com os territórios orientais. Seu reino ficou conhecido como Francia Oriental. Mais tarde, receberia o nome de Reino da Alemanha e seria o maior e mais importante membro do Sacro Império Romano-Germânico.

Ø   O último monarca da Francia Oriental da linhagem carolíngia foi Luís, a Criança, que morreu em 911 com apenas 18 anos. Após a morte de Luís, a Criança, a nobreza elegeu como seu sucessor Conrado I, um franco que não era, no entanto, carolíngio. O sucessor de Conrado I foi Henrique I da Germânia, saxão, que governou entre 919 e 936; a partir de 921, passou a ser denominado de rex francorum orientalum (rei dos francos do leste/oriente). Henrique I da Germânia é tido como o fundador da dinastia otoniana. 

    O sucessor de Henrique I foi seu filho, Otão I, que foi eleito em 936. Em 951, casou-se com Adelaide da Itália, a rainha do reino itálico, o que lhe garantiu controle desse reino. Com o tempo, os 3 reinados oriundos do Tratado de Verdun foram sendo absorvidos ou anexados ao que começava a ser 2 grandes reinos, a oeste, a França, e a leste o Sacro Império Romano-Germânico. Otão I, com o controle de vários territórios, domínios feudais e reinos, além de contar com o apoio de uma parte considerável da nobreza de outros territórios, foi oficialmente coroado imperador pelo Papa João XII no dia 2 de fevereiro de 962. Nascia, oficialmente, o Sacro Império Romano-Germânico. Otão ainda foi nomeado o guardião dos Estados Pontifícios, por meio do Diploma Ottonianum, documento ratificado pelo próprio e pelo Papa.  

O Título de Imperador a Origem do nome SIRG

Ø   Vale lembrar que o título de Imperador havia sido conferido a Carlos Magno e chancelado pelo próprio Papa Leão III, no Natal do ano 800. Mas nesse caso, ainda não existia Sacro Império Romano-Germânico; Carlo Margno era imperador dos Francos. Assim sendo, o título de imperador permaneceu na linhagem carolíngia e foi transmitido após o Tratado de Verdun a Lotário, o neto mais velho de Carlos Magno. O título permaneceu na linhagem carolíngia por décadas após a morte de Luís o Piedoso, mas caiu em desuso no início do séc. X.  O título foi resgatado e reivindicado novamente por Otão I, que acabou se tornando oficialmente o primeiro imperador do SIRG.

Desse modo, a partir de Otão I, o Sacro Império Romano-Germânico passa a existir de forma contínua e ininterrupta por 844 anos, até a sua dissolução por Napoleão, que havia conquistado ou submetido ao seu comendo boa parte da Europa, em 1806. Na ocasião, o Sacro Império Romano-Germânico foi substituído pela Confederação do Reno. Alguns historiadores, no entanto, preferem situar a origem do Sacro Império Romano-Germânico no próprio Carlos Margno, já que ele foi o primeiro a usar oficialmente o título de Imperador. Mas nos parece mais acertado considerar que o Sacro Império Romano-Germânico tem, de fato, seu início com Otão I.     

Ø   Apesar de o título de imperador ter sido restaurado por Otão I, a parte relativa a “romano” começoi ser usada posteriormente. Otão II – imperador de 973-983 – foi o primeiro a usar o título de Imperador Romano. Em 1034, usou-se pela primeira vez o termo “Império Romano” para designar os territórios sob o comando de Conrado II. E em 1157, o termo “Império Sagrado” foi usado pela primeira vez. O termo Sacrum Romanum Imperium – em alemão, Heiliges Römisches Reich – apareceu pela primeira vez em 1254. Após diversas variações ao longo dos séculos seguintes, o termo definitivo e consagrado pela historiografia (Sacro Império Romano-Germânico, em alemão, Heiliges Römisches Reich Deutscher Nation) surgiu em 1512. 

Ø  A utilização de romano no nome evoca, evidentemente, o passado glorioso do império romano, algo já sonhado por Carlos Magno e seu sonho de uma Europa unida. Ao adotar o nome de “Império Romano”, esse império na Europa se colocava numa situação ambígua diante daquilo que chamamos de Império Bizantino. Nunca é demais lembrar que “Império Bizantino” é uma invenção da historiografia, uma invenção, até certo ponto etnocêntrica. O Império Bizantino nada mais é que o verdadeiro Império Romano do Oriente que sobreviveu às invasões barbaras que continuou a existir e em alguns momentos até a prosperar ao longo de toda a Idade Média. Ao usar o nome de "Império Romano", o Sacro Império Romano-Germânico adotava uma postura não só de herdeiro do verdadeiro império romano – o que é, no mínimo discutível, dada a existência do próprio Império Bizantino – como também buscava uma espécie de reconhecimento em relação ao seu rival Oriental. No entanto, os Bizantinos jamais aceitaram o status de “romano” no Sacro Império Romano-Germânico, e sequer chamavam o imperador de imperador.

Em 1759, Voltaire escreveu no Essai sur l'histoire générale et sur les mœurs et l'esprit des nations  que o Sacro Império Romano-Germânico não era nem sagrado, nem romano, nem império. Essa declaração do filósofo ilumista francês é sintomática. Não era sagrado porque, apesar da proximidade do poder religioso com o temporal, havia uma separação mais clara entre ambos do que no caso do Oriente, chegando a haver, como vimos, até mesmo controvérsias sérias entre ambos. Não era obviamente romano, porque não houve continuidade entre esse império e o Império Romano, apenas uma apropriação do nome. E não era Império porque, apesar do título, o imperador não tinha poderes absolutos; na verdade, seus poderes dependiam dos vínculos feudais e o Sacro Império Romano-Germânico era mais uma espécie de confederação de territórios feudais.