quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

Posto aqui no Blog a versão escrita da minha palestra na XXI Semana de História da Universidade Estadual de Goiás, realizda no dia 2 de dezembro de 2020 

 

A África como centro intelectual do Cristianismo na Antiguidade Tardia:

O Egito do séc. IV

 

Introdução

Quando se fala em Egito, muito provavelmente, a primeira coisa na qual se pensa é nos faraós, nas pirâmides e na Esfinge, em outras palavras, naquilo que os historiadores convencionaram chamar de Egito dinástico. É bem provável, aliás, que só se pense nisso, como se o Egito se resumisse a isso. Para o senso comum, a mídia e a indústria do entretenimento, esse é o único Egito que existe. É como se os cerca de 6 mil anos de existência e história do Egito se resumissem ao período dos faraós. Pode parecer estranho, mas fica a impressão de que o Egito desapareceu ao fim do período dinástico e ficou oculto por mais de 2 mil anos para reaparecer magicamente no séc. XX, para ser visitado pelos turistas ocidentais, ávidos por conhecer as pirâmides e a Esfinge e ver as múmias.

Será que nada de importante ou interessante aconteceu no Egito desde a deposição do último faraó, no séc. IV a.C.? Nada que fosse digno da atenção do grande público e até mesmo dos historiadores? Na melhor das hipóteses, há de se pensar também em Cleópatra; de modo mais Exato, Cleópatra VII Filopátor, a famosa rainha que encantou os romanos. E nesse caso, é bem possível que se cometam anacronismos, associando a famosa rainha helenística – ou seja, de origem grega – ao período faraônico, como se ela fosse contemporânea dos faraós.

No entanto, cerca de 200 Anos separam o fim do período dinástico – ou seja, a era dos faraós - de Cleópatra VII. Para elucidar como essas percepções genéricas e anacrônicas da história do Egito podem ser enganadoras, cerca de 2500 anos separam Cleópatra VII da construção da famosa Esfinge da necrópole de Gizé. Portanto, o intervalo de tempo que separa Cleópatra da construção da Esfinge é maior do que o intervalo de tempo que separa a própria Cleópatra de nós. 

Diante dessas considerações iniciais, fica a pergunta: o que mais aconteceu no Egito ao longo da história e que vai além do período faraônico e de Cleópatra? Obviamente, não há tempo aqui para se fazer um resumo de toda a história do Egito desde o período dinástico até os dias de hoje. Não seria sequer possível falar de toda a história do Egito na Antiguidade. Assim sendo, apenas a título ilustrativo, o Egito Antigo, além do período dinástico, pode ser dividido nos períodos helenístico, romano e bizantino – esse último, já limítrofe com a divisão tradicional da história, que fala em Antiguidade e Idade Média. Costuma-se ainda falar em Egito copta, fazendo-se referência ao Egito nativo, que sofreu pouca ou nenhuma influência da helenização – cultura grega – ou romanização. O Egito copta possuía, inclusive, uma língua própria, que era usada por uma parte considerável dos cristãos da região na época romana/bizantina e que foi sendo gradualmente substituída pelo árabe com a conquista islâmica, a partir do séc. VII.  

Mas para o assunto que deve ser tratado aqui, será usado outro conceito, o de Antiguidade Tardia. O objetivo é mostrar como o Egito e, portanto, a África, foi o centro intelectual do cristianismo nesse período. Nesse período, o Egito foi o palco de alguns dos principais acontecimentos que seriam fundamentais para o desenvolvimento do cristianismo que, nunca é demais dizer, é uma das forças modeladoras da nossa civilização ocidental.

Eu iria além – mesmo correndo o risco de ser polêmico - e diria que o auge da história do Egito não é a civilização faraônica, mas o Egito da Antiguidade Tardia, com toda sua efervescência cultural, demonstrada, por exemplo, pela atuação de filósofos neoplatônicos e pelos grandes teólogos cristãos que lá atuaram nessa época. Em outras palavras, o cristianismo e o Ocidente são o que são hoje devido em grande medida ao que aconteceu no Egito – e, portanto, na África – na Antiguidade tardia, principalmente no séc. IV. O objetivo dessa palestra, portanto, não é somente demostrar o que aconteceu de importante no Egito nesse período, mas demostrar como o Egito – e, portanto, a África – são fundamentais para a formação do Ocidente.

Falemos agora um pouco sobre o conceito de Antiguidade Tardia.   

 

A Antiguidade Tardia

O objetivo do conceito de Antiguidade Tardia é trazer algumas nuances em relação à divisão tradicional da história em períodos, marcados por rupturas e divisões abruptas. Assim sendo, ao invés de enxergar a passagem da Antiguidade para a Idade Média como uma ruptura, baseando-se num acontecimento repentino – a queda do último imperador romano do Ocidente em 476 – o conceito de Antiguidade Tardia propõe que essa transição tenha acontecido de forma gradual.

Quando se fala em Antiguidade Tardia, portanto, fala-se de um período de transição gradual entre a Antiguidade e a Idade Média, período esse que se situaria mais ou menos entre os sécs. III e VIII, e que moldaria em grande medida a Idade Média e a civilização Ocidental. Muitos dos fenômenos fundamentais para a formação do medievo começaram a ganhar forma nesse período. Um exemplo elucidativo é o monasticismo cristão, particularmente importante para o que se discute aqui, já que surgiu no Egito do séc. IV.

Falemos agora rapidamente da chegada do cristianismo ao Egito e de como ele se desenvolveu ao longo dos primeiros séculos para então elucidar sua importância no séc. IV.    

A Chegada do Cristianismo ao Egito

Tradicionalmente, atribui-se a evangelização do Egito a São Marcos, o autor de um dos Evangelhos. Ele é tido até hoje – inclusive pelos cristãos egípcios – como o primeiro bispo/Patriarca de Alexandria, a mais importante cidade do Egito do ponto de vista cultural e que se tornou a sede da Igreja egípcia. Após um primeiro impulso de expansão na segunda metade do séc. I e primeira metade do séc. II, o cristianismo já estava solidificado no Egito ao final do séc. II, como aliás, em todo o norte da África.

O cristianismo na África produziu importantíssimos personagens e teólogos de vulto – além daqueles dos quais vamos falar mais adiante – como Tertuliano, São Cipriano e o grande Santo Agostinho. O cristianismo africano produziu ainda 3 papas: São Vitor I (189-199), São Melquíades (310/311-314) e São Gelásio I (492-496). No entanto, apesar de bastante solidificado, o cristianismo no norte da África não resistiu ao impulso expansionista do Islã no séc. VII e praticamente desapareceu, a exceção do Egito. Até hoje, cerca de 10% da população egípcia – algo em torno de 8 a 10 milhões de pessoas – são cristãos autóctones.

Os primeiros intelectuais cristãos do Egito

Ao final do séc. II e início do séc. III, o ambiente cultural e erudito de Alexandria, mergulhado nos debates filosóficos – em especial neoplatônicos – se misturou com o cristianismo e fez surgir dois grandes teólogos: Clemente de Alexandria e Orígenes. Fazendo jus ao legado platônico de interpretação alegórica da Bíblia já adotado por um filósofo judeu de Alexandria – Fílon de Alexandria – Clemente de Alexandria e Orígenes inauguraram a tradição da interpretação alegórica cristã da Bíblia. Nas palavras de Drobner, “de acordo com a visão de mundo platônico-estoica, de que o mundo visível não passa de imagem do mundo verdadeiro das ideias, por trás do sentido literal da Sagrada Escritura” há um “sentido espiritual mais profundo”[1].

Essa maneira de interpretar – alegórica – se contrapunha à maneira de interpretar a Bíblia típica de outra importante cidade da Antiguidade Tardia, Antioquia, onde se dava preferência a interpretações literais. A tradição da interpretação alegórica nascida em Alexandria influenciou grandes teólogos na Antiguidade, como Ambrósio, Agostinho e Atanásio. E é até hoje importantíssima no catolicismo. Nunca é demais lembrar, portanto, que a interpretação alegórica cristã da Bíblia nasce e se desenvolve no Egito, portanto, na África.

O séc. IV   

O séc. IV é um dos mais significativos – e também um dos mais conturbados – séculos da história do cristianismo. Começou com a mais violenta perseguição aos cristãos já realizada pelo Império Romano: em 303, o imperador Diocleciano iniciou tal perseguição, que se mostrou particularmente violenta no norte da África e no Egito. Aliás, essa perseguição é tão significativa para os cristãos do Egito que eles não contam os anos a partir do presumível nascimento de Cristo, mas a partir do início do reinado do próprio Diocleciano, em 284. Eles chamam os anos não de “antes de Cristo” ou “depois de Cristo”, mas de “Ano dos mártires”, fazendo uma referência aos cristãos martirizados pela perseguição de Diocleciano.   

De forma surpreendente, 10 anos depois, as perseguições cessaram e o cristianismo foi declarado religião lícita por meio do Edito de Milão, promulgado pelos imperadores do Ocidente e Oriente, respectivamente, Constantino e Licínio. Constantino também foi o primeiro imperador a se converter ao cristianismo, segundo Eusébio de Cesaréia, o Historiador eclesiástico e biógrafo do próprio Constantino, devido a um sonho na véspera de uma batalha contra o aspirante a imperador Magêncio.

A partir de então, o cristianismo – que ganhava adeptos e crescia na clandestinidade – passou a ganhar adeptos e crescer às claras, até que, ao final do mesmo século, o imperador Teodósio o declarou religião oficial do império romano, por meio do Edito de Tessalônica (380). A Igreja passou a ser reconhecida institucionalmente e o séc. IV se tornou o século dos grandes debates teológicos e dos grandes concílios, o momento no qual a Igreja intensificou as expressões dogmáticas de sua doutrina. É por isso que o século IV é conhecido como a época de ouro da patrística – ou seja, da teologia dos chamados Padres da Igreja, os primeiros grandes teólogos do cristianismo. 

Mas se por um lado as perseguições terminaram, por outro, a Igreja passou a ter de lutar contra as tentativas de interferência do poder imperial nos seus assuntos; os imperadores cristãos julgavam ter o direito de interferir nas questões doutrinais. Se eles possuíam poderes políticos quase que absolutos sobre seu império, julgavam que poderiam ter também poderes sobre a Igreja e o cristianismo. A própria Igreja – por meio principalmente de autoridades eclesiásticas como Atanásio de Alexandria, por exemplo – não aceitava essas tentativas de ingerência do Estado em seus assuntos. E muitos dos embates do século em questão aconteceram por conta disso. E é exatamente no Egito do séc. IV que muito do que acontece de importante nesse contexto toma forma, seja no âmbito meramente teológico e doutrinal, seja no âmbito das relações entre o Império e a Igreja.  

O Egito do séc. IV

Podemos resumir o que vamos falar sobre o Egito do séc. IV em 3 grandes personagens dessa época que eram nativos do país: Antão, Pacômio e Atanásio. Eu costumo chamá-los de “ o esplendor do Egito”, exatamente por serem os 3 personagens principais dessa época de ouro do Egito, pouco conhecida, mas extremamente importante para a história da Humanidade e, principalmente, para a história do cristianismo e do Ocidente.

Antão é chamado de “O Pai dos Monges”, por ser considerado o fundador do monasticismo cristão, esse fenômeno tão importante para a cristandade; ele teria sido o primeiro a se refugiar no deserto do Egito para viver como eremita. Pacômio, por sua vez, seria o fundador do monasticismo cenobita; diferentemente dos eremitas, que vivem sozinhos por conta própria, os monges cenobitas vivem em um mosteiro, em comunidade. Pacômio fundou o primeiro mosteiro, Tabenasi, e juntou a seu redor, vivendo sob as normas de uma regra monástica, eremitas que antes vivam só, dando assim, início ao monasticismo cenobita, que mais tarde se espalharia por toda a cristandade e seria uma das forças modeladoras da Idade Média e do Ocidente.  Atanásio foi o grande patriarca do Egito no séc. IV: todas as páginas que puderem ser escritas sobre ele seriam pouco para fazer justiça ao seu legado e importância, seja por meio de sua atuação pastoral contra os cismas e as heresias do séc. IV, seja por conta de sua vasta produção literária.

Falemos um pouco de cada um desses 3 personagens.  

“O Deserto tornou-se uma cidade”: o surgimento do monasticismo.

Essa famosa frase de Atanásio, na sua obra Vida e Conduta de Santo Antão 14), resume um dos novos fenômenos sociais do séc. IV: o monasticismo cristão. Segundo Atanásio – que redigiu a famosa biografia de Antão – inspirados pelo exemplo de Antão, inúmeros cristãos deixaram suas vidas e foram para o deserto viver como monges eremitas, a ponto de o deserto ficar tão povoado quanto uma cidade.

Antão era um egípcio nativo; sua língua materna era o copta, a língua autóctone do Egito. Muito provavelmente, não era helenizado, detalhe importante que será abordado em breve. Historicamente, é questionável que ele tenha sido, de fato, o primeiro monge eremita cristão. Não é impossível que tenha havido contemporâneos a ele que tenham se refugiado no deserto nem que tenha havido gente que fez o mesmo antes dele. Mas o fato é que ele se tornou o mais célebre e ficou conhecido como aquele que inspirou o fenômeno que se espalhou pelo Egito e depois por toda a cristandade.

O monasticismo surge mais ou menos no mesmo momento em que o cristianismo é legalizado. A legalização do cristianismo fez com que as perseguições aos cristãos acabassem no império e, consequentemente, os martírios, ou seja, o assassinato de cristãos que não negavam sua fé. Até então, o herói do cristianismo, o cristão modelo, era o mártir. Com o fim dos martírios, o monge passa a ser visto como o novo herói, o novo modelo de cristão. Esse novo modelo de herói se baseava em grande medida no ideal de que o monge era o novo mártir. Algumas décadas depois de Antão, Jerônimo (Epístola 3, 5.108, 31; Tractatus de Ps.115), por exemplo, vai qualificar o monasticismo de o “novo martírio”: Os mártires morriam literalmente, os monges morrem alegoricamente, para o mundo.

O fato de o monasticismo ter nascido no Egito, e não em qualquer outro lugar da cristandade, costuma ser explicado por dois fatores. Primeiramente, o exemplo de personagens bíblicos que se refugiavam no deserto para viverem uma vida de penitência e oração – como Elias, João Batista e o próprio Jesus – poderia ser fácil e literalmente seguido por um egípcio, já que o deserto é uma realidade geográfica da região. O Egito é um país incrustado no deserto e entrecortado pelo Nilo e seu vale fértil. Mas basta uma breve caminhada de alguns quilômetros para se distanciar o suficiente da área fértil e estar no deserto pedregoso e montanhoso. Portanto, o que para a maioria dos cristãos era uma metáfora – refugiar-se no deserto – para o egípcio era uma realidade palpável, próxima, cotidiana.

A segunda razão pode ser apontada como o encontro direto do cristianismo com a cultura nativa do Egito, sem o intermédio da cultura grega. Nas regiões helenizadas – ou seja, sob a influência da cultura e da língua gregas desde a época de Alexandre, o Grande (séc. IV a.C.) – do Egito, o cristianismo chegou e se espalhou vinculado à cultura grega.  Mas a medida que chegava às regiões mais longínquas do país, regiões fora da influência da cultura e língua grega, o cristianismo mantinha contato direto, sem intermediários, com a cultura autóctone do Egito, a milenar e sapiencial cultura egípcia. E esse encontro deu origem ao monasticismo.

Um exemplo interessante desse contato direto do cristianismo com a cultura nativa do Egito está ligado às crenças na vida após a morte. A civilização faraônica foi uma das primeiras a desenvolver todo um conjunto de crenças relativas à vida no além. Essas crenças versavam sobre uma vida material e corpórea após a morte; daí a necessidade de mumificação do defunto, pois se acreditava que ele iria usar o corpo e seus pertences pessoais no além. Essa crença numa vida corpórea e material no além diferia das crenças dos gregos – surgidos séculos depois – segundo as quais a vida após a morte era apenas espiritual.

As crenças nativas egípcias sobre essa vida corpórea após a morte eram tão fortes e enraizadas que sobreviveram à helenização e à romanização. Isso pode ser comprovado, por exemplo, pelo fato de a de a mumificação ter continuado a ser uma prática no Egito durante os períodos helenístico e romano, como comprovam as famosas múmias do oásis do Fayum. Assim sendo, quando o cristianismo chega ao Egito, ele se encaixa como uma luva, já que, no cristianismo existe a crença na ressurreição dos mortos, ou seja, a ideia de que no fim dos tempos, todos ressuscitarão na carne – os justos indo para o Paraíso e os ímpios para o inferno – vivendo uma vida eterna num corpo glorioso, e não somente no espírito. Essa crença egípcia e sua importância podem ser atestadas até às vésperas da islamização por meio de relatos lendários de martírios de cristãos – chamados pelos historiadores de Paixões Épicas coptas ou Martiriológios Coptas – nos quais o corpo do mártir – apesar das horríveis torturas que lhe são impostas – permanece intacto, testemunhando a importância de sua preservação para a vida eterna. Temos, nesse caso, um claro exemplo do encontro do cristianismo popular com as crenças autóctones egípcias.

Falemos agora de Pacômio. A contribuição desse outro egípcio nativo que provavelmente também não teve contato substancial com a cultura helênica foi, digamos assim, institucionalizar o monasticismo. Ao invés de os monges viverem como eremitas, morando em cavernas no deserto, cada um por conta própria, muitos deles passaram a viver em mosteiros, em comunidade, seguindo uma regra monástica. Além dos mosteiros fundados por Pacômio, muitos outros foram surgindo no sul do Egito e logo se espelharam por toda a cristandade.

Pacômio foi muito provavelmente o autor da primeira regra monástica: um texto com regras que regulam a vida dos monges dentro do mosteiro, com normas sobre alimentação, horários, orações, trabalhos, atividades, etc. Essa regra foi muito provavelmente redigida em copta e depois traduzida para o grego. Anos mais tarde, ninguém menos que São Jerônimo traduziu-a do grego para o latim; é provável que essa tradução latina tenha influenciado Bento de Núrsia – também conhecido como São Bento – na elaboração de sua famosa regra monástica, que costuma ser resumida no adágio “Ora et labora”, e cuja importância para a formação do Ocidente é essencial.

Os monges cenobitas, ao entrarem para o mosteiro, aprendiam a ler, e muitos aprendiam também a escrever e se tornavam escribas, numa época em que a imensa maioria da população era analfabeta. Os mosteiros costumavam ter bibliotecas imensas, que são responsáveis por preservar a maioria da literatura greco-romana que chegou até nós. E esse fenômeno aconteceu tanto no Oriente quanto no Ocidente. Além de ser o responsável pela preservação da cultura e da literatura greco-romana, nunca é demais lembrar o papel fundamental que o monasticismo teve para a formação da cristandade e em especial para a formação da civilização ocidental.

Os monges foram os grandes intelectuais da Idade Média; No Ocidente, em particular, alguns monges, como Tomás de Aquino e Boaventura, ficaram célebres e entraram para a história devido a sua produção literária, intelectual e filosófica. Pode-se citar ainda outros monges menos famosos, como Dionísio Exíguio, que no séc. VI calculou o ano do nascimento de Cristo; a partir de então, a tradicional contagem dos anos, que começava com a fundação de Roma, passou a ser gradualmente substituída pela contagem dos anos que levava em conta o ano do suposto nascimento de Jesus. Além disso, a ação dos monges da Antiguidade Tardia e Idade Média como copistas foi essencial para a preservação da maioria da literatura da Antiguidade clássica, como mencionado acima. Sem a ação desses obstinados escribas monásticos, muito da produção literária da Antiguidade não teria chegado até nós.

Assim sendo, nunca é demais lembrar que esse fenômeno tão importante da história da humanidade – e em especial do Ocidente – nasceu no Egito e, portanto, na África. Essa realidade é quase que desconhecida, até mesmo de historiadores, e exatamente por isso deve ser revelada e relembrada com afinco e insistência.  

O século de Atanásio

O outro grande personagem do Egito do séc. IV foi Atanásio de Alexandria, o célebre patriarca e Doutor da Igreja. Inspiro-me aqui na expressão para falar da Atenas do séc. V a.C, como século de Péricles e a aplico a Atanásio, dada a sua importância para o que aconteceu no séc. IV. A ação desse Patriarca foi tão importante e incansável que ele chegou a ser exilado por 5 imperadores diferentes, e isso, após o Edito de Milão, ou seja, numa época na qual o cristianismo já estava legalizado. Seria impossível falar de toda a atuação de Atanásio em um único texto. Vamos nos concentrar nos seguintes aspectos, portanto: sua ação contra os arianos, sua ação contra o cisma meliciano, sua ação em favor do estabelecimento do cânon e sua produção literária.

Os arianos

No início do séc. IV, surgiu uma das mais graves controvérsias da história do cristianismo, a controvérsia ariana. Grosso modo, um padre de origem Líbia que atuava no Egito, Ário, começou a defender que Jesus não era Deus, mas uma criatura; a mais excelsa criatura, criada antes de tudo, mas uma criatura. Logo, as ideias desse padre causaram confusão a tal ponto que se viu a necessidade de se convocar o primeiro grande Concílio da história da Igreja, o Concílio de Niceia (325). O Concílio não somente reafirmou que Jesus era Deus como promulgou uma profissão de fé que definia como tal divindade deveria ser expressa: “gerado, não criado, consubstancial ao Pai”.

A época do Concílio, Atanásio era apenas secretário do Patriarca de Alexandria, Alexandre. Quando Atanásio tornou-se patriarca, teve de trabalhar em prol da aceitação do Concílio e de sua profissão de fé. Sua grande batalha foi fazer com que a expressão “gerado, não criado, consubstancial ao Pai” fosse aceita, já que muitos bispos, talvez até a maioria, da época se opunham à fórmula.

Em resumo, se hoje os cristãos acreditam que Jesus é Deus, eles devem isso à incansável batalha desse africano egípcio, Atanásio de Alexandria.

O cisma meliciano 

Outra grande batalha de Atanásio foi contra o cisma meliciano. O fim da perseguição de Diocleciano gerou um problema: o que fazer com aqueles cristãos que tinham renegado a fé diante da ameaça de morte? Aceitá-los de volta como cristãos ou bani-los para sempre. A posição geral da Igreja era de aceitá-los de volta, mas um grupo de egípcios, liderados pelo bispo Melécio de Lycópolis, argumentava que eles deveriam ser excluídos ou readmitidos somente mediante severas penitências públicas. O impasse acabou resultando em um cisma: os seguidores de Melécio – daí o nome “cisma meliciano” – se separaram da Igreja e passaram a chamar a si mesmos de “igreja dos mártires”. Atanásio dedicou boa parte de sua vida pastoral a combater e acabar com esse cisma, denunciando várias de suas práticas, como, por exemplo, desenterrar os restos mortais de mártires para enterrá-los em outro local.    

O cânon

Todo ano, os patriarcas de Alexandria escreviam uma carta festiva, na qual definiam as datas das festas religiosas da Igreja do Egito naquele ano. Nessas cartas, eles aproveitavam para tratar de assuntos doutrinais. Em 367, Atanásio escreveu a sua carta festiva mais famosa, na qual ele fornece uma lista canônica, ou seja, uma lista com os textos que deveriam fazer parte da Bíblia. Não há espaço aqui para uma discussão profunda sobre a questão do estabelecimento do Cânon, mas pode-se dizer que essa lista de Atanásio se insere no conjunto das importantes discussões sobre o estabelecimento do texto bíblico. Trata-se de uma das mais antigas listas canônicas cuja procedência e autor são conhecidos. Mais do que isso, é uma lista elaborada por uma autoridade eclesiástica cuja atuação no conturbado século IV é bastante conhecida e foi bastante decisiva.    

Obras de Atanásio

As obras de Atanásio refletem sua atuação pastoral e abordam as questões nas quais ele se envolveu, como a controvérsia ariana, o cisma meliciano, etc. Destaquemos algumas de suas obras.

A primeira é a Encarnação do Verbo. Como o próprio título da obra sugere, nela, o autor defende a encarnação do verbo, ou seja, que Jesus é Deus. Essa obra é o testemunho doutrinal da maior e mais famosa batalha pastoral de Atanásio, a batalha pela aceitação da divindade de Jesus, diante das dificuldades na recepção do Concílio de Niceia e do seu credo. A segunda obra que destacamos aqui é a Vida e Conduta de Santo Antão: a primeira biografia de um santo, que acabou servindo de modelo para as biografias de santos posteriores. Essa obra ajudou Atanásio a se manter próximo dos monges egípcios, que se tornaram um dos grandes aliados do patriarcado de Alexandria.  

 

Fontes para o estudo do Egito cristão no séc. IV

Não é segredo, nem novidade, que o trabalho do historiador depende necessariamente da análise de fontes primárias. Sem as fontes primárias, o historiador não está apto a tecer seus próprios comentários e redigir sua própria análise da história; ele se limita, simplesmente, a repetir o que outros historiadores já disseram antes dele. Não seria diferente no caso da história do cristianismo na Antiguidade tardia e, em especial, no que tange ao assunto do presente texto, no caso do Egito do séc. IV. Assim sendo, cabe aqui um pequeno inventário das principais fontes primárias que permitem o estudo do contexto aqui exposto.  

Pode-se dividir os principais conjuntos de fontes primárias que nos ajudam a conhecer o Egito cristão do séc. IV nos seguintes grupos: Histórias Eclesiásticas, Cartas Sinodais, Literatura eclesiástica, Literatura monástica (cartas, regras, instruções), Vidas de Santos (hagiografias) e Apócrifos do Novo Testamento.  

 

 

 

Conclusão

O Egito do séc. IV foi o palco de uma série de eventos decisivos para a história do cristianismo e, consequentemente, do Ocidente. Esses acontecimentos não só influenciaram como modelaram de maneira decisiva questões fundamentais para a história de toda a cristandade, como o surgimento do monasticismo, a crença na divindade de Jesus e a formação da lista dos textos bíblicos. Esses eventos foram igualmente protagonizados por personagens egípcios, portanto, africanos. Essa é uma realidade pouco conhecida, mas que jamais deve ser esquecida: A África, por meio do Egito, foi o centro intelectual do cristianismo no séc. IV, esse momento tão decisivo na história dessa religião e da humanidade.

 



[1] DROBNER, Humbertus. Manual de Patrologia. Petrópolis: Vozes, 2003, p. 137.