Capa da edição bilingue (grego/francês) do texto da Carta sobre os Sínodos, de Atanásio de Alexandria |
Acabei de terminar a resenha da edição bilingue (grego/francês) do texto da Carta sobre os Sínodos, de Atanásio de Alexandria, a ser publicada na revista Laval théologique e philosophique, da Université Laval. O texto é difícil, mas também de extrema importância para a compreensão de um dos momentos mais importantes e ao mesmo tempo mais confusos da história da Igreja: o pós Concílio de Niceia.
O Concílio de Niceia (325) elaborou um símbolo de fé que dizia que Jesus era "gerado, não criado, e substancial ao Pai". Esse símbolo de fé visava expressar de maneira dogmática - e portanto definitiva - a divindade de Cristo e, assim, resolver as polêmicas cristológicas levantadas desde o início do séc. IV sobre a divindade de Cristo, por aquilo que se convencionou chamar de Arianismo. O objetivo do Concílio de Niceia não era somente dizer clara e dogmaticamente que Jesus era Deus, mas, além disso, dizer como essa divindade deveria ser expressada (daí a adoção das expressões "gerado" e "consubstancial").
Engana-se, no entanto, quem acha que as polêmicas foram resolvidas pelo Concílio; na verdade, elas até pioraram e os 50 anos seguintes ao Concílio viram uma das mais polêmicas controvérsias teológicas da história da Igreja. De um lado, aqueles que defendiam o credo niceno - representados e liderados principalmente por Atanásio de Alexandria - do outro, os que se opunham ao Concílio.
Deve-se notar que nesse segundo momento da "crise Ariana", aqueles que eram contrários ao Símbolo niceno não eram necessariamente contrários à ideia de que Cristo era Deus, mas sim à forma como essa divindade era definida pelo próprio Símbolo. A maioria não concordava com o uso das expressões "gerado" e principalmente "consubstancial", dizendo, dentre outras coisas, que não se tratava de expressões bíblicas, mas de vocábulos que tinham sido emprestados do vocabulário filosófico grego. Por isso, costuma-se chamar a esses de "neo-arianos", já que eles não eram exatamente iguais aos arianos da primeira metade do séc. IV, que negavam a divindade de Cristo. Entre os neo-arianos encontravam-se diversos bispos e importantes e influentes teólogos da época, o que demonstra a grande dificuldade que foi manter intacto o Símbolo de Niceia e sua maneira de expressar a divindade de Cristo.
Nessa Carta sobre os Sínodos, Atanásio fala de vários sínodos (ou seja, reuniões de bispos) orientais posteriores ao Concílio de Niceia, sínodos estes que tentaram invalidar o próprio Credo niceno ou corrigi-lo: Jerusalém (335), Antioquia I (341), Antioquia II (344), Sirmium I (351), Sirmium II (357), Rimini (357), Seleucia (359), Constantinopla (360) e Antioquia III (361).
Obviamente, Atanásio condena virulentamente essas tentativas, defendendo com unhas e dentes o Símbolo niceno, que seria ratificado pelo I Concílio de Constantinopla, cerca de 20 anos depois de a Carta sobre os Sínodos ter sido escrita. Aliás, a controvérsia Ariana só foi definitivamente resolvida com o I Concílio de Constantinopla (381), graças também à ação teológica dos chamados "Padres Capadócios" (Basílio Magno e os dois Gregórios).
Mas, se a doutrina de Niceia sobre a divindade de Cristo conseguiu sobreviver ao complicado o séc. IV, isso se deve em grande medida à atuação incansável de Atanásio, que, por muito tempo, foi praticamente o único defensor do Símbolo niceno. Sem sua persistência, a doutrina trinitária tal qual definida pelo Concílio de Niceia provavelmente teria desaparecido.