Estátua do Imperador Diocleciano |
No início do século IV, os cristãos tiveram de enfrentar a famosa perseguição de Diocleciano; tal perseguição foi muito provavelmente a mais violenta da história do cristianismo. Ela foi particularmente dura em alguns locais do Império Romano, como o Norte da África e principalmente o Egito (até hoje, o calendário dos cristãos egípcios se baseia não na presumível data do nascimento de Cristo, mas, na data de ascensão ao poder do imperador Diocleciano, tamanha a cicatriz que tal perseguição deixou no Egito).
Apesar da predileção deste blogueiro que vos escreve pelo cristianismo egípcio, neste post falaremos de uma situação específica gerada pela perseguição em questão no norte da África, o cisma Donatista. O motivo? A atitude desses cismáticos lembra um pouco uma atitude de alguns católicos no Brasil hoje.
Durante a perseguição em questão, muitos clérigos não resistiram ao medo e à pressão e acabaram entregando aos oficiais imperiais livros e vasos sagrados utilizados na liturgia para serem queimados e destruídos. Esses clérigos passaram a ser conhecidos como traditores. Entre 311 e 312, um desses traditores, Cecílio, foi consagrado bispo de Cartago, a mais importante cidade do norte da África Ocidental.
Uma parcela considerável dos cristãos do norte da África, liderados pelo bispo Donato (daí o nome "Donatistas"), não aceitou tal consagração, e um cisma acabou sendo gerado. Esses cristãos se separaram dos demais e acabaram formando uma igreja que eles denominavam como "igreja dos santos", sem espaço para quem quer que tivesse apostatado ou colaborado com os oficiais imperiais durante a perseguição de Diocleciano.
Um dos principais traços doutrinais dos Donatistas (equivocado, diga-se de passagem) é que eles acreditavam piamente que a validade dos sacramentos administrados por um sacerdote dependia de sua santidade. Em outras palavras, para os Donatistas, qualquer sacramento que contasse com a participação de um sacerdote pecador era inválido. Muitos dos Donatistas foram, inclusive, "rebatizados" por conta dessa crença.
O cisma perdurou durante todo o século IV, até que na última década do século em questão, ninguém mais, ninguém menos que Santo Agostinho resolveu combater os Donatistas. Houve primeiro uma tentativa de reintegração dos cismáticos; em 393, Agostinho escreveu os Psalmus contra Donati, nos quais ele aponta os erros doutrinais da heresia em questão.
Imagem simulando um ícone antigo de Santo Agostinho |
Em 400, porém, Agostinho percebeu que uma reconciliação era praticamente impossível de ser feita, passando, então, a tratá-los não somente como cismáticos, mas, de fato, como hereges. Passou, portanto, a combatê-los por meio de tratados teológicos e com a participação direta em sínodos que tentavam resolver a questão, contando ainda com o apoio de sanções imperiais contra esses hereges em específico.
Entre os anos de 400 e 418, Agostinho escreveu vários tratados denunciando e refutando os Donatistas. A batalha contra os Donatistas - ao lado da batalha contra os Pelagianos - foi o maior esforço heresiológico de Agostinho.
Abaixo, algumas das principais obras de Agostinho contra os Donatistas:
De baptismo contra Donatistas
De unitate ecclesia
Gesta collationis Carthaginiensis
Breviculus collationis cum Donatistis
Dentre os principais assuntos tratados nessas obras, poderíamos destacar a questão primordial da unidade da Igreja - abalada pelo cisma Donatista - e a ideia herética segundo a qual a validade dos sacramentos dependeria da santidade do sacerdote.
Do ponto de vista eclesiástico, a questão foi definitivamente resolvida no Sínodo de Cartago (411); sob a liderança de Agostinho, o Donastismo foi oficialmente condenado e no ano seguinte, um edito do Imperador Honório ordenou a supressão dos Donatistas por meio de sanções imperiais.
Mas o que isso tem a ver com o Brasil de hoje?
Simples, um certo formador de opinião, bastante ativo nas redes sociais, que gosta de posar de tradicionalista e que conta com uma horda de seguidores virtuais, começou a divulgar recentemente que seria virtuoso por parte dos católicos deixar de ir à Missa dominical porque os sacerdotes no Brasil hoje são comunistas e coisas do gênero, e tais missas são, portanto, inválidas.
Em um post no Facebook, por exemplo, esse formador de opinião declarou que muitos sacerdotes no Brasil "não têm autoridade para dar os sacramentos" e que, portanto, "aceitar os sacramentos da mão dessas criaturas só para não faltar à missa é sacrilégio". Em outros posts ele afirma que muitas ordenações no Brasil são inválidas e que, portanto, seria mérito deixar de ir à Missa.
Notem que esse formador de opinião está cometendo o mesmo erro dos Donatistas. Ele está condicionando a validade dos sacramentos à santidade pessoal do sacerdote. Como vimos acima, tal heresia já foi combatida por Santo Agostinho e oficialmente condenada pela Igreja.
Não deixa de ser irônico que alguém que goste tanto de posar de tradicionalista caia numa heresia condenada há mais de 1600 anos e combatida por ninguém menos que Santo Agostinho, uma das mentes mais brilhantes da história.