terça-feira, 17 de novembro de 2015

Novo Livro: A Gnose em Questão

Nessa semana foi publicado meu novo livro: 

A Gnose em Questão: Ensaios sobre Gnose e Apocalíptica na Antiguidade e a Biblioteca Copta de Nag Hammadi.





Trata-se de um volume que reúne ensaios, artigos e comunicações científicas, adaptadas para o formato de um livro, que eu escrevi ou apresentei ao longo dos meus anos de mestrado. 

Semana que vem, no dia 24, será feito o lançamento oficial em Brasília, na Faculdade UPIS, onde leciono. 

Para quem é de fora de Brasília, o livro já pode ser adquirido no site da Editora Primas, clicando aqui.


Quem quiser conferir o conteúdo, segue o sumário do livro: 


I
A Biblioteca Copta De Nag Hammadi
A Descoberta
A Publicação
Os Textos
A Classificação dos Textos 
O Codex Tchacos
Conclusão

II
A Literatura Copta e o Estudo do Cristianismo
Primitivo: Fontes e Perspectivas

III
Jesus e Maria Madalena: do Evangelho de Filipe
ao Código da Vinci

IV
O Codex V de Nag Hammadi:
um Corpus Apocalíptico

V
O Apocalipse de Paulo do Codex V
de Nag Hammadi
Breve História da Pesquisa
A Ascensão
O Apocalipse de Paulo e a Apocalíptica
Considerações Finais 

VI
O Apocalipse de Adão: Apocalíptica ou Gnose?

VII
O Contexto de Compilação da Biblioteca
de Nag Hammadi: o Caso do Codex V


quarta-feira, 2 de setembro de 2015

O 'Evangelho da Esposa de Jesus' requentado

Foto do fragmento que ficou conhecido como "Evangelho da Esposa de Jesus". 

Há cerca de 3 anos, no mês de setembro de 2012, o famigerado "Evangelho da Esposa de Jesus" era divulgado. Ao mesmo tempo em que Karen King apresentava o texto a um seleto grupo de especialistas da língua copta num Congresso em Roma, o site do New York Times disponibilizava em seu site uma foto do fragmento acompanhado de uma matéria sensacionalista. 

Resumindo, logo nos primeiros dias após a divulgação os estudiosos chegaram a conclusão praticamente unânime de que se tratava de uma falsificação. Eram muitas as evidências, tanto físicas quanto linguísticas, de que não se tratava de um texto antigo.  

Em abril de 2014, uma edição do conceituado periódico Harvard Theological Review foi inteiramente consagrada à discussão do fragmento. Alguns chegaram a pensar que os testes químicos feitos principalmente com a tinta usada no fragmento poderiam comprovar ou ao menos advogar em favor da autenticidade do documento. 

Mas o tiro acabou saindo pela culatra e esses testes acabaram por fornecer as provas definitivas de que se tratava de uma falsificação. 

Já discutimos bastante e detalhadamente tudo isso aqui no blog, não vou ficar me repetindo. Quem não acompanhou a discussão e quiser saber de tudo, pode dar uma olhada aqui.

Mas se não restam dúvidas de que se trata de uma falsificação, porque estamos de volta a esse assunto? A resposta é simples: a imprensa ressuscitou o assunto. 

Em princípio, não há nenhuma novidade, eles apenas requentaram aquilo que já se sabia. 

Aparentemente, novos estudos foram conduzidos pelas Universidades de Harvard e Columbia, e esses estudos demonstraram que o papiro é autêntico. Ao menos é isso que diversas matérias que tem circulado em grandes sites e agências de notícias têm dito. Imagino que com isso eles queiram dizer que o papiro do fragmento é de fato antigo. 

Isso não é novidade nenhuma; muito se especulou ainda em 2012 sobre a possibilidade de o papiro de fato ser antigo, inclusive, me parece que foi isso que o especialista em papirologia, Roger S. Bagnall, atestou. Nesse caso, o falsificador moderno teria adquirido um papiro antigo no mercado negro de antiguidades, usando-o assim para fazer sua falsificação. Nós também discutimos essa possibilidade aqui no blog. 

Assim sendo, o papiro seria antigo, mas o que foi escrito nele foi certamente obra de um falsificador moderno. 

Mas como o falsificador conseguiu adquirir um papiro antigo? Ora, conseguir um fragmento de papiro antigo pode ser mais fácil do que vocês imaginam. Vários desses fragmentos podem ser encontrados no mercado negro de antiguidades e muitos são até vendidos via e-bay, como o esse blog já mostrou (clique aqui). 

Ou seja, não há nada de novo sobre o famigerado 'Evangelho da esposa de Jesus'.

Daqui a alguns anos eles pegam essa história e requentam de novo, querem apostar?          

terça-feira, 19 de maio de 2015

Os 70 anos da descoberta de Nag Hammadi: o que aprendemos?

Nesse ano de 2015, comemoramos os 70 anos da descoberta dos códices de Nag Hammadi, os manuscritos que eu estudo e que são de fundamental importância para o estudo de manifestações marginais do cristianismo primitivo. 

Para comemorar a data, a Faculdade de Teologia e Ciências das Religiões da Université Laval, em Québec, no Canadá, vai realizar no fim desse mês de maio (nos dias 28, 29 e 30) um colóquio que vai reunir diversos estudiosos - renomados e novos pesquisadores - dos manuscritos de Nag Hammadi. 

Eu terei a honra de participar do colóquio apresentando algo sobre o assunto da minha tese. 

Para quem se interessar, segue o programa completo do evento: 

Nag Hammadi à 70 ans. Qu’avons-nous appris ?
Nag Hammadi at 70: What Have We Learned?

29 au 31 mai 2015 / May 29-31, 2015, Université Laval

Programme

Vendredi, 29 mai 2015     

8 h 30 – 9 h          Ouverture du colloque :
                                Tuomas Rasimus, Fellow de l’Académie finlandaise, Université d’Helsinki ; Professeur associé, Université Laval
                                Gilles Routhier, Doyen de la Faculté de théologie et de sciences religieuses, Université Laval
                                Anne-France Morand, Directrice de l’Institut d’études anciennes et médiévales, Université Laval
                                Louis Painchaud, Directeur du Groupe de recherche sur le christianisme et l’Antiquité tardive, Université Laval

Séance 1               Réexamens – Président : Michel Roberge, Université Laval

9 h – 9 h 40                          There is no such thing as Gnosticism: But what have we got instead?
Einar Thomassen, Université de Bergen

9 h 40 – 10 h 20                  Reconsidering Docetism
Karen L. King, Université Harvard

10 h 20 – 11 h                     The History of the Term gnôstikos (Part II)
Lance Jenott, Université d’Oslo

11 h – 11 h 30                     Pause-santé
                                                                        
Séance 2               L’Évangile selon Thomas – Président : Jean-Daniel Dubois, École pratique des Hautes études de Paris

11 h 30 – 12 h 10               The Gospel of Thomas After 70 years: Where We Have Been, Where We Are, and Where We Are Going
André Gagné, Université Concordia

12 h 10 – 12 h 50                               Un mot sur les « trois paroles » dites à Thomas (EvTh, log. 13, et AcTh 47, 2)
Paul-Hubert Poirier, Université Laval

12 h 50 – 14 h 30                               Diner / Lunch

Séance 3               Le contexte de l’Égypte du IVe siècle – Présidente : Elaine Pagels, Université Princeton

14 h 30 – 15 h 10                               Textual Fluidity and Post-Nicene Rewriting in the Nag Hammadi Codices
                                               Hugo Lundhaug, Université d’Oslo
               
15 h 10 – 15 h 50                               Gospel of Truth – Some New Insights on the History of Valentinianism on the Basis of a New Analysis of Genre, Context and Content
                                                               Christoph Markschies, Université Humboldt de Berlin

15 h 50 – 16 h 30                               La production et la destination des codices de Nag Hammadi (suite)
                                               Louis Painchaud, Université Laval

16 h 30 – 17 h                     Pause-santé

Séance 4               Présentation d’affiches I – Président : Einar Thomassen, Université de Bergen

17 h – 17 h 15                     Taylor Baruchel, Université Concordia : ‘Like a Virgin’: Gender, Virginity and Authority in the Hypostasis of the Archons
17 h 15 – 17 h 30               Ivan Miroshnikov, Université d’Helsinki : The Text of the Gospel of Thomas: Some Remarks
17 h 30 – 17 h 45               Joseph E. Brito, Université Concordia : The Characterization of Mary and Salome in the Gospel of Thomas: A Narrative Approach
17 h 45 – 18 h                     Bradley Rice, Université McGill : Of Doubles and Doppelgängers on the Eastern Frontier: Judas Thomas and Mani’s Heavenly Twin

19 h                                       Souper / Dinner








Samedi, 30 mai 2015          

Séance 5               Le codex VII. La réception moderne du gnosticisme – Président : Hugo Lundhaug, Université d’Oslo

9 h – 9 h 40                     La gestion du temps dans la Paraphrase de Sem (NH VII, 1) : Perspectives narratologique et eschatologique
Michel Roberge, Université Laval

9 h 40 – 10 h 20                  Les gnostiques basilidiens et les textes du codex VII de Nag Hammadi
Jean-Daniel Dubois, École pratique des Hautes études de Paris

10 h 20 – 11 h                   Nag Hammadi Research and its Impact on the Presentation and Construction of ‘Gnosticism’ in Non-Specialist Scholarship
Michael Kaler, Université de Toronto à Mississauga

11 h – 11 h 30                     Pause-santé

Séance 6               Nouveau Testament et gnosticisme – Président : Christoph Markschies, Université Humboldt de Berlin

11 h 30 – 12 h 05               Revisiting the ‘Gnostic’ Paul
Tilde Bak, Université de Copenhague

12 h 05 – 12 h 40                Johannine Christianity and Sethianism: Reconsiderations in Light of the Ophite Myth
Tuomas Rasimus, Université d’Helsinki / Université Laval

12 h 40 – 12 h 50               Response to Tilde Bak and Tuomas Rasimus
Elaine Pagels, Université Princeton

12 h 50 – 14 h 30                               Diner / Lunch

Séance 7               Pistis Sophia. Apocryphon de Jean – Président : Zlatko Pleše, Université de Caroline du Nord à Chapel Hill

14 h 30 – 15 h 10                Le processus salvifique des âmes selon la Pistis Sophia (Codex Askewianus)
                                               Claudio Gianotto, Université de Turin

15 h 10 – 15 h 50          Les rapports entre le livre III de la Pistis Sophia du codex Askew et la recension longue de l’Apocryphon de Jean
                                               Steve Johnston, Université Laval 

15 h 50 – 16 h 30                The Apocryphon of John: The Current State of Research
                                               Antti Marjanen, Université d’Helsinki

16 h 30 – 17 h                     Pause-santé

Séance 8                Présentation d’affiches II – Président : John D. Turner, Université du Nebraska à Lincoln

17 h – 17 h 15                     Spiros Loumakis, Université Concordia : Purity and Danger in the Nag Hammadi “Library”
17 h 15 – 17 h 30               Julio Dias Chaves, Université Laval : Reading Nag Hammadi Codices in Late-Antique Egypt: Some Methodological Issues in Light of the Theory of Reception
17 h 30 – 17 h 45               Calogero Miceli, Université Concordia : Acts of Peter and the Twelve Apostles (NHC 6.1) after Seventy Years
17 h 45 – 18 h                 Meaghan Matheson, Université Concordia & Stéphanie Machabée, Université McGill : Bridging Nag Hammadi with the Ancient Mediterranean World: A Lens on Gender Discourse

19 h                                       Souper / Dinner







Dimanche, 31 mai 2015    

Séance 9               Gnosticisme et philosophie – Présidente : Karen King, Université Harvard

9 h – 9 h 40                          Plotinus and the Gnostics as Interpreters of Plato’s Dialogues
                                               John D. Turner, Université du Nebraska à Lincoln

9 h 40 – 10 h 20           A Route from Plato to Plotinus Via the Platonizing Sethians? A New Hypothesis for the Historical Development of Later Platonist Metaphysics
                                                Zeke Mazur, Université Laval

10 h 20 – 11 h                     Theology and Epistemology in Nag Hammadi Writings
Zlatko Pleše, Université de Caroline du Nord à Chapel Hill

11 h – 11 h 30                     Pause-santé
                                                                        
Séance 10             Pratiques et rituels – Président : Claudio Gianotto, Université de Turin

11 h 30 – 12 h 10               Onction, purification et parfum de bonne odeur agréable au Père dans l’Évangile de la Vérité (NH I, 3)
                                               Anne Pasquier, Université Laval
               
12 h 10 – 12 h 50                Les exercices spirituels dans les textes de Nag Hammadi
                                                 Jean-Pierre Mahé, École pratique des Hautes études, Paris

12 h 50 – 14 h 30                               Diner / Lunch

Séance 11             Hermétisme, alchimie, séthianisme – Président : Jean-Pierre Mahé, École pratique des Hautes études, Paris

14 h 30 – 15 h 10            ‘They Are Called the Stranglers’: The Christian Reading (and Rewriting?) of Hermes’ Perfect Discourse (NHC,8)
                                               Christian Bull, Université d’Oslo

15 h 10 – 15 h 50              Marsanès et Nicothée dans la littérature gnostique, philosophique et alchimique
                                              Eric Crégheur, Université Laval

15 h 50 – 16 h 30               Les gnostiques séthiens et la Bible
                                               Bernard Barc, Université Jean-Moulin (Lyon-III)

16 h 30 – 17 h                     Pause-santé
                                              
Séance 12             Archéologie et dialectologie – Présidente : Anne Pasquier, Université Laval

17 h – 17 h 40                     Les sources archéologiques du monachisme égyptien au IVe siècle : état de la question
                                                Victor Ghica, École Norvégienne de Théologie

17 h 40 – 18 h 10               La dialectologie copte et les textes de Nag Hammadi              
Wolf-Peter Funk, Université Laval

18 h 10 – 18 h 30               Synthèse et conclusion du colloque

20 h                                       Banquet de clôture   

quinta-feira, 5 de março de 2015

A Formação do Cânon e os Apócrifos

Foto do Codex Vaticanus aberto.
O Codex Vaticanus é uma das mais antigas cópias da Bíblia, 


O assunto desse post talvez seja um daqueles que mais desperta o interesse do grande público: os famigerados apócrifos e porque eles não fazem parte do Cânon. 

O assunto é sem dúvida complexo, e envolve diversos assuntos correlatos. A formação do Cânon é um processo longo, mesmo porque envolve não somente o Novo Testamento, mas também o Antigo. Portanto, seria impossível tratar de todas essas questões de maneira satisfatória em único post. Para quem quiser saber mais sobre o assunto, eu sugiro a leitura do livro do Julio Trebolle Barrera, A Bíblia Judaica e a Bíblia Cristã: uma Introdução à História da Bíblia. Neste post falaremos de maneira específica dos chamados Apócrifos do Novo Testamento e porque eles não fazem parte do Cânon. 

A quem interessar, acrescento que tenho um projeto de escrever um livro sobre o assunto a médio prazo. Um livro acessível, que visa um público leigo no assunto, e não especialistas.  

Bom, o primeiro passo é definir o que é um apócrifo. Sempre que dou palestras sobre o assunto, começo logo perguntando à platéia: "o que é um apócrifo". A primeira resposta sempre é: "um livro que não faz parte do Cânon" ou "um livro que não faz parte da Bíblia". Essas respostas não estão erradas, mas são simplistas e incompletas. Ora, pensemos num livro qualquer composto e publicado no séc. XX: Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. Esse livro, todos sabemos, não faz parte do Cânon, nem por isso é um apócrifo. O mesmo se pode dizer de praticamente todos os outros livros já escritos na história da humanidade, com exceção dos 73 livros que formam o Cânon. 

Ou seja, um apócrifo é muito mais do que um livro que não faz parte do Cânon. A palavra "apócrifo" significa, via de regra, livro secreto. Mas aquilo que chamamos de apócrifo é muito mais que isso. Para facilitar a vida de vocês, segue uma tentativa de definição de "apócrifo" feita por mim mesmo:    


Apócrifo do Novo Testamento é um texto composto na Antiguidade ou Antiguidade Tardia, com conteúdo religioso e/ou teológico, que imita ou faz referência a um dos gêneros literários do Novo Testamento (Evangelhos, Epístolas, Atos e Apocalipses) cuja autoria é falsamente atribuída (pseudonímia) a uma figura de destaque do judaísmo ou cristianismo primitivo, geralmente um apóstolo. Os assuntos teológicos e religiosos tratados pelos apócrifos são os mais variados possíveis; não existe, nem de longe, qualquer tipo de unidade teológica ou doutrinal entre os diversos apócrifos hoje conhecidos; muitos deles professam doutrinas hereges, mas nem todos. Eles foram elaborados em contextos, línguas, épocas e locais diversos, o que impossibilita que eles sejam estudados de maneira monolítica ou homogênea.  


A definição é grande e complexa. Não temos espaço aqui para comentar de maneira detalhada todas os seus pormenores. Vamos nos ater àquilo que diz respeito diretamente à formação do Cânon. 

Ora, como diz nossa definição, os apócrifos fazem referência ou imitam um dos gêneros literários do Novo Testamento. Se isso acontece, é porque necessariamente os apócrifos são posteriores à composição dos textos do Novo Testamento. Ou seja, os apócrifos não são da mesma época do Novo Testamento, não foram compostos no séc. I, nos anos ou nas décadas posteriores à morte de Jesus e à expansão inicial do cristianismo. De maneira geral, os apócrifos são obras que começam a ser compostas a partir da segunda metade do séc. II (mas muito foram compostos bem depois disso).   
Existe, portanto, um intervalo de pelo menos cerca de 50 anos entre a composição do texto neotestamentário mais recente ( o Evangelho de João, composto na virada do séc. I para o II) e os primeiros apócrifos. 

Essa questão cronológica nos leva a tratar de outro ponto da nossa definição, chamada pseudonímia. Chama-se assim o ato de se atribuir falsamente a autoria de um texto a uma figura conhecida, que goze de autoridade frente a um determinado grupo. No caso dos cristãos, geralmente a apóstolos. Portanto, um texto como o Evangelho de Tomé, por exemplo, não foi composto pelo apóstolo Tomé, mesmo porque na época em que ele foi composto (segunda metade do séc. II em diante), o apóstolo Tomé não estava mais vivo. E essa é uma característica comum a todos os apócrifos. 

Foto de duas páginas do Codex II de Nag Hammadi,
com o fim do Apócrifo de João e o início do Evangelho de Tomé


Vejamos o que alguns autores da Igreja primitiva, Papias de Hierápolis, Justino Mártir e Irineu de Lyon têm a dizer sobre os Evangelhos em específico. 

Papias de Hierápolis viveu na virada do séc. I para o séc. II, mais ou menos de 70 a 163. Ele viveu, portanto, na época em que os textos do Novo Testamento foram compostos. Os escritos de Papias não foram preservados integralmente, mas apenas de maneira indireta e fragmentária por meio da obra de Eusébio de Cesaréa. Dois desses fragmentos são os mais antigos textos que falam da autoria de pelo menos 2 dos Evangelhos canônicos: Marcos e Mateus.  

Entre 155 e 160, Justino Mártir fala em duas de suas obras, a Primeira Apologia e o Diálogo com Trifão sobre o que ele chama de as "Memórias dos Apóstolos". Vejamos um exemplo: 


Foi isso que os apóstolos, nas memórias por eles escritas, que se chamam Evangelhos, nos transmitiram 
(1a Apologia, 66, 3). 


No Diálogo com Trifão, Justino confirma que essas memórias eram lidas nas Assembleias dos Cristãos. Ou seja, temos a evidência de que já no séc. II, os Evangelhos eram conhecidos e usados pela cristandade, inclusive na Liturgia. 

Alguns anos depois, por volta de 180, Irineu, bispo de Lyon, em sua obra conhecida como Contra as Heresias, nos fala do "Evangelho Quadriforme"(Contra as Heresias III, 11,8). Irineu usa essa expressão para designar os 4 Evangelhos canônicos que conhecemos hoje (Marcos, Mateus, Lucas e João), alertando os cristãos para a existência de outros evangelhos que já começavam a circular na sua época, mas que não eram dignos de confiança. 

Posto isso, podemos supor com certo grau de plausabilidade que os primeiros apócrifos começaram a aparecer na segunda metade do séc. II, entre o relato de Justino e o relato de Irineu. Podemos também assegurar que os 4 Evangelhos já eram lidos na Liturgia cristã nessa época. E por fim, podemos também concluir que nessa época, os cristãos já atribuíam um caráter sagrado aos 4 Evangelhos e atestavam que eles foram compostos pelos apóstolos ou discípulos dos apóstolos, e que ao menos certas autoridades eclesiásticas alertavam para o caráter falso (inclusive no tocante a pretensa autoria) de outros textos que se apresentavam como Evangelhos. 

Na medida em que as décadas passavam, os 4 Evangelhos se difundiam pelo mundo romano e eram cada vez mais lidos e consumidos pela cristandade, sendo usados na Liturgia. E o mesmo foi acontecendo com os demais textos do Novo Testamento (somente o caso do Apocalipse é peculiar, pois esse texto demorou para ser aceito no Oriente, mas isso é assunto para outro post). Alguns apócrifos também foram lidos, difundidos e usados em liturgias específicas, mas nunca de maneira universal, como aconteceu no caso dos textos neotestamentários. 

Esse é um dos critérios de estabelecimento do Cânon, portanto: a universalidade da aceitação por parte dos cristãos da Antiguidade. Nenhum apócrifo chegou a gozar de uma autoridade e aceitação universal como o Evangelho de Mateus, por exemplo. 

Mas, do ponto de vista teológico, esse critério é secundário. O principal critério de canonicidade é a inspiração. Do ponto de vista teológico, para que um texto faça parte do Cânon, é necessário que ele seja inspirado. E como saber se um texto é inspirado ou não? Já na Antiguidade, a Igreja, por meio de bispos e até de Papas, usou sua autoridade para definir isso. 

No séc. IV, ao menos um documento eclesiástico define o Cânon de maneira institucional e oficial. Vejam bem, estamos falando de maneira oficial e institucional, porque, na prática, para a grande maioria dos cristãos, o Cânon já era conhecido. 

Um desses documentos é a Carta Festiva de 367 de Atanásio. Nessa carta, o Bispo de Alexandria fornece uma lista dos livros canônicos. No tocante ao Novo Testamento, essa lista tem exatamente os mesmos textos do Novo Testamento hoje. Ainda no séc. IV, o Papa Dâmaso ordenou que Jerônimo normatizasse a tradução Latina da Bíblia (essa versão ficou conhecida como Vulgata). A Vulgata tornou-se de certa maneira uma versão oficial da Igreja Latina, com os mesmos textos do Novo Testamento que até hoje são considerados canônicos pelos católicos.  


Como dito no começo do post, o processo de formação e definição do Cânon do Novo Testamento é longo e complexo. Os apócrifos ficaram fora dele por diversos motivos, nenhum deles político, como muitas vezes nos é sugerido pela mídia e industria do entretenimento.