segunda-feira, 17 de novembro de 2014

O que Constantino tem a ver com o Cânon e a Bíblia?

Fragmento de uma estátua de Constantino, o Grande


O imperador romano Constantino, também conhecido como "Constantino, o Grande", é sem dúvida um dos mais importantes personagens da história do cristianismo. Constantino não foi clérigo, nem teólogo ou santo, mas seu governo e suas ações foram de fundamental importância para a aquisição de um caráter institucional por parte da Igreja e pelo fim das perseguições aos cristãos no início do séc. IV (confira o post sobre o Edito de Milão). Foi a partir do governo de Constantino que a Igreja passou a ser uma instituição reconhecida pelo Estado. Mas, se por um lado, a Igreja deixou de ser perseguida, por outro, teve de passar a conviver com as tentativas de ingerência imperial nos assuntos eclesiásticos, doutrinais e dogmáticos. Essas tentativas de ingerência foram praticadas tanto por Constantino quanto por seus sucessores, mas raramente aceitas pelas autoridades da Igreja, o que chegou, inclusive, a causar o exílio de bispos (Atanásio de Alexandria, por exemplo, não arredou pé e foi exilado 5 vezes, por 5 imperadores diferentes). 

E é isso que muitas vezes causa confusão na cabeça das pessoas, que acabam achando que por conta dessas ingerências, a influência do poder temporal no poder espiritual foi maior do que é contado pela "história oficial". 

Voltando a Constantino, sua importância para a história do cristianismo e consequentemente da Igreja é tão grande que muita gente acaba lhe atribuindo atos e interferências em assuntos eclesiásticos que ele nunca praticou. O melhor exemplo disso é a lenda segundo a qual ele seria o verdadeiro responsável pela definição do Cânon bíblico (livros que compõem a Bíblia), tendo retirado e incluído os livros que bem entendesse na Bíblia. Mais do que isso, esse ato teria sido praticado no Concílio de Niceia (no ano de 325), um dos momentos mais importantes e representativos da História da Igreja. 

Confesso não saber a origem dessa lenda sobre Constantino definindo o Cânon no Concílio de Niceia, mas ela certamente ganhou popularidade e passou a ser parte do senso comum depois do sucesso do Código da Vinci, de Dan Brown, publicado em março de 2003, tendo virado filme de Hollywood alguns anos depois (2006, Columbia Pictures). Na era da Internet e das redes sociais, é comum ver gente divulgando essa informação falsa por aí, e pior, com ares de cientificidade e cheios da verdade, usando como "fonte" o próprio Dan Brown.         

É verdade que Constantino teve um papel importante no Concílio de Niceia, mas muito mais na sua convocação do que no seu desenvolvimento e nas suas decisões. Mas o mais importante no tocante a essa questão do Cânon é que o Concílio de Niceia simplesmente não discutiu nem proclamou nada em relação a isso. Voltaremos a essa questão mais tarde. 

Por hora, discutamos a convocação do Concílio de Niceia. Para que se possa entender o Concílio em questão e sua convocação, é necessário entender a discussão teológica que o gerou. No início do séc. IV, um popular presbítero chamado Ário começou a proclamar em Alexandria que Jesus era uma criatura; a mais excelsa das criaturas, criada antes do tempo e por meio da qual todo o resto teria sido criado, mas mesmo assim, uma criatura. Como o foco do post não é o arianismo (doutrina de Ário e suas vertentes), não vamos nos ater aos detalhes dessa questão, mas apenas elucidar que com o tempo, as ideias de Ário se popularizaram e se espalharam por toda a cristandade, que, na época em questão, praticamente coincidia com o Império Romano. 

E o imperador da época era exatamente Constantino. Para Constantino, a unidade do cristianismo e da Igreja coincidiam com a unidade de seu império. Com o Edito de Milão e o fim das perseguições, o cristianismo tornou-se gradualmente a religião majoritária do Império Romano e uma divisão entre os cristãos poderia acarretar numa divisão política. Por isso, Constantino tentou se envolver na discussão, enviando seu teólogo pessoal, Osius, bispo de Córdoba, para Alexandria, foco do arianismo. A tentativa de conciliação em questão não deu certo, então, Constantino decidiu convocar aquilo que seria o primeiro Concílio Ecumênico da história da Igreja, o Concílio de Niceia, em 325. Osius de Córdoba teve um papel fundamental no Concílio, mas isso foi o mais perto que Constantino esteve de participar ativa e efetivamente do evento.

Posto isso, voltemos à questão do Cânon. A principal discussão do Concílio de Niceia não visava, nem de longe, a questão do Cânon, mas a divindade de Cristo e a maneira como ela deveria ser expressa dogmaticamente. Nem nas discussões adjacentes do Concílio, a questão do Cânon foi abordada. Foram discutidas questões relativas às estruturas eclesiásticas, à dignidade do clero, readmissão de cismáticos e hereges, e prescrições litúrgicas, por exemplo. Não houve absolutamente nenhuma discussão sobre o Cânon (quem quiser conferir o Símbolo do Concílio de Niceia em português e o conteúdo de cada um dos assuntos discutidos, pode dar uma olhadinha no Wikipedia clicando aqui). Quem quiser olhar uma fonte menos acessível, mas mais confiável, pode consultar manuais de Patrologia (eu indico o do Altaner & Stuiber ou o do Drobner; sempre uso ambos nas minhas aulas).   

A lenda sobre a qual falamos acima (Constantino seria o verdadeiro definidor do Cânon), portanto, simplesmente não procede. Constantino foi muito importante para a história do cristianismo, sem dúvida. Mas no Cânon e em assuntos dogmáticos ele nunca tocou. 

Mas como o Cânon foi definido? Porque alguns livros foram incluídos na Bíblia e outros não? O que são "apócrifos"?  

Esse é um assunto para o próximo post. Aguardem.  

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Mais um "Evangelho Perdido" é encontrado

Esse blog existe há cerca de oito anos. Acho que nesse período, passei mais tempo "desmistificando" e desmentindo notícias falsas sobre complôs eclesiásticos, "evangelhos secretos" e exegeses estapafúrdias do que falando de qualquer outra coisa. Bom, chegou a hora de fazer isso novamente. 

Com a chegada do Natal, a possibilidade de surgir uma notícia bombástica e estapafúrdia sobre Jesus, de preferência envolvendo Maria Madalena, sempre aumenta. Natal e Páscoa são as datas prediletas para isso (quem acompanha o blog sabe muito bem disso). 
Pois então, eis que me deparo com a seguinte notícia hoje à tarde, indicada no Facebook pelo blog o Catequistaque me pediu gentilmente para escrever sobre o assunto: 

"Manuscrito de 1500 anos comprova que Jesus teve filhos com Maria Madalena, dizem pesquisadores". 

A notícia foi publicada no site do jornal "O Globo" e quem quiser conferir, pode clicar aqui.  

Notem que a notícia é dada em poucas linhas, em um artigo curtíssimo, de apenas seis parágrafos, sem espaços para detalhes. Como eu disse uma vez a um amigo que sempre me indaga sobre esse tipo de coisa, essa falta de detalhes e informações precisas é o primeiro fator que deve nos levar a desconfiar da notícia. Como eu posso julgar a veracidade da informação sem saber detalhes? Sem saber como o manuscrito foi datado, de onde ele vem, em qual língua está escrito, se é papiros ou pergaminho, a quem a autoria é atribuída, etc? Eu sequer conheço o conteúdo propriamente dito e exato do texto, mas apenas o que a matéria do Globo me disse. Não sei se se trata de uma narrativa em primeira ou segunda pessoa, por exemplo. Qual o tamanho do texto, etc.  

Claro que essas informações são precisas demais e o objetivo do artigo de jornal é informar o grande público, e não os estudiosos. Mas mesmo assim, a falta de informações precisas pode ser um indício de que se trata de mais uma pilantragem. 

Na matéria em questão, é dito que um manuscrito de 1500 anos foi encontrado na Biblioteca Britânica e que esse mesmo manuscrito, segundo especialistas, conteria um texto chamado "Evangelho Perdido" e comprovaria que Jesus e Maria Madalena teriam sido casados e tido dois filhos. O texto estaria escrito em aramaico e teria sido traduzido pelo professor Barrie Wilson e o escritor Simcha Jacobovic. 

O Globo cita como fonte para a notícia o famoso jornal inglês "The Sunday Times". Por fim, a matéria cita que esse tal "Evangelho Perdido" não é o primeiro a afirmar que Jesus e Maria Madelena foram casados, já que Nikos Kazantzakis em A Última Tentação de Cristo  Dan Brown no Código da Vinci já fizeram tal afirmação.   


Analisemos as inconsistências da notícia: 

Primeiro, ainda não se sabe nada sobre a origem desse manuscrito, nem como foi feito para ele ser datado. Aliás, sendo sincero, eu diria que não se pode sequer afirmar que ele existe ainda, já que nem foto eu vi. Depois dos casos escabrosos do "Evangelho da Esposa de Jesus", uma falsificação comprovada e que foi discutida em detalhe aqui no blog, e do "Evangelho de Barnabé" e do "Evangelho Secreto de Marcos", o mínimo que se espera é que as autenticidades do manuscrito e do texto sejam comprovadas.

Além disso, é dito que o manuscrito tem cerca de 1500 anos (o que faria dele um manuscrito fabricado por volta do ano 500, digamos), mas nada é dito sobre data de composição original do texto. Notem que se trata de duas coisas diferentes: o manuscrito contém uma cópia do texto, cópia que pode ter sido feita vários séculos ou pelo menos várias décadas depois de o texto ter sido composto. E em geral é isso que acontece com manuscritos antigos. 
De qualquer modo, como não sei nada sobre a composição original, só posso me ater ao que a matéria diz sobre o manuscrito. 
O fato de a matéria dizer que o manuscrito está escrito em aramaico é bastante significativo porque pode indicar que quem escreveu a própria matéria quer que o leitor associe o texto diretamente a Jesus, já que o aramaico era a língua falada por Jesus e os apóstolos. Ora, um texto em aramaico, pelo menos na cabeça do grande público, aumenta as possibilidades de autenticidade, de ser algo que estaria diretamente ligado ao próprio Jesus. 
Só que o aramaico falado por Jesus e os apóstolos desapareceu por volta do ano 200 d.C. Portanto, poderíamos nos perguntar: é possível que um manuscrito do séc. V esteja escrito no aramaico de Jesus? Me parece que não. 

Outra inconsciência bem simples, que qualquer um pode entender: seria lógico atribuir rigor histórico a um único testemunho textual, conhecido por meio de um único manuscrito copiado quase 500 anos após a morte de Jesus? Acho que eu nem preciso responder essa pergunta aqui, né?!      

Portanto, mesmo que esse texto exista (e, repito, depois do fiasco do Evangelho da Esposa de Jesus, me dou ao direito de duvidar que ele exista), ele não comprova nem de longe que Jesus e Maria Madalena tenham sido casados. Ele demonstraria, no máximo, que alguém no séc. V (500 anos depois de Cristo ter morrido) acreditava ou queria que se acreditasse que Jesus foi casado. Nada, absolutamente nada, a mais que isso. 

Para fechar com "chave de ouro", a matéria cita obras de ficção para dizer que outros já tinham levantado a possibilidade de Jesus e Maria Madalena terem sido casados. Ora, obras de ficção não são fontes históricas nem historiografia. Não se pode basear o estudo histórico nesse tipo de literatura. Usar o Código da Vinci para estudar o Jesus histórico seria como usar "Bastardos Inglórios" para estudar a 2a Guerra Mundial. E no caso específico do Código da Vinci, eu mesmo tratei da questão em várias palestras ao longo de 2006 e 2007 e em breve um artigo meu sobre o assunto será publicado em um livro pela Editora Prismas.  

Enfim, a matéria do Globo diz que o texto será lançado pela Editora Pegasus na quarta-feira. Se tivermos informações precisas sobre a questão depois disso, escrevo aqui novamente. 
Aliás, não consegui entender se a matéria fala da editora Pegasus internacional (Pegasus Press) ou da editora nacional com o mesmo nome.
De qualquer modo, vale dizer que nem uma das duas se notabiliza por publicar obras acadêmicas. Uma descoberta desse porte mereceria ser publicada por uma das grandes editoras de estudos bíblicos, como, por exemplo, a Brill ou a Oxford University Press, não? 
Sem querer ofender, mas isso seria mais um indício de pilantragem? 


Enfim, algo me diz que até o Natal, ainda vamos ouvir falar disso. Atenção para as cenas do próximo capítulo. 


Atualizando

Nessa quarta-feira, novas informações sobre o tal "Evangelho Perdido" foram divulgadas e a falta de noção e honestidade intelectual dos autores citados acima ficou ainda mais nítida. 

O texto na verdade é a História Eclesiástica de Zacarias, o Retor. Também conhecido como Zacarias Escolástico, esse escritor foi bispo e historiador e viveu na virada do séc. V para o séc. VI. 

O manuscrito em questão é de pergaminho e se encontrava na Biblioteca do Museu Britânico desde o séc. XIX. 

A língua na qual o texto está escrito é, na verdade, o siríaco, e não o aramaico, como havia afirmado a matéria do Globo. 

Assim sendo, todas as críticas feitas acima sobre o texto permanecem: trata-se de um texto tardio, conhecido por meio de um único manuscrito cuja data é cerca de 500 anos posterior à morte de Jesus. 

O mais grave, porém, não diz respeito exatamente à datação do texto ou do manuscrito, mas sim a seu conteúdo, ou, de maneira mais precisa, à maneira como Wilson e Jacobovic interpretaram o conteúdo. 

No texto, Jesus e Maria Madalena não são sequer mencionados. O texto conta a história de um tal José e Aseneth, que teriam se casado. Segundo os autores, esses personagens são representações de Jesus e Madalena, respectivamente. 

Enfim, isso é muito mais do que forçar a barra. Isso quase que me dá saudades do Evangelho de Judas, naquela época, pelo menos, a enganação era mais elaborada. 


Detalhe importante que tinha me passado desapercebido, Jacobic foi um dos realizadores do documentário exibido no Discovery Channel em 2007 sobre o "ossuário de Tiago, o irmão de Jesus". Na época, foi demonstrado que se tratava de mais uma falsificação. E vale lembrar que esse documentário seguiu o padrão citado lá no começo do post: foi lançado às vésperas da Páscoa.