A internet é realmente fantástica. A mesma internet que nos bombardeia diariamente com informações falsas e inúteis, também é um grande instrumento de colaboração acadêmica, por exemplo. Sem a internet, a rápida e eficiente comunicação entre estudiosos de diferentes países, fundamental na identificação da fraude do fragmento que ficou conhecido como "Evangelho da Esposa de Jesus, jamais seria possível.
Na última quinta-feira, dia 24 de abril de 2014, outro capítulo dessa saga pôde ser visto. O colega Christian Askeland, que tive o prazer de conhecer pessoalmente em dezembro de 2013, num congresso em Oslo, escreveu um post esclarecedor em seu blog. No mesmo dia, algumas horas depois, meu amigo Alin Suciu publicou em seu blog algumas informações adicionais, tomando como ponto de partida a descoberta de Askeland.
Antes de falar das descobertas de Askeland e Suciu propriamente ditas, falemos de um ponto específico discutido na edição especial da Harvard Theological Review publicada no início do mês de abril de 2014 (fizemos um post sobre o assunto aqui no blog).
Espero que as considerações a seguir não sejam técnicas demais; a maioria das informações é de difícil compreensão para quem não é da área. Mas como o objetivo do blog é tornar tais informações acessíveis, me esforcei ao máximo para ser claro.
Um dos assuntos discutidos na edição em questão, a tinta usada no manuscrito, foi tida como o melhor argumento em favor da autenticidade do fragmento. Segundo a análise, trocando em miúdos, a tinta era compatível com a tinta usada em outros fragmentos antigos ou medievais. Inclusive, foi o ponto abordado pela grande mídia, que divulgou coisas como "segundo especialistas, o EEJ não é falso". Vale lembrar, no entanto, que mesmo que a tinta fosse compatível com tintas usadas em manuscritos antigos, a falsificação não estava descartada, pois nada impediria que o falsificador usasse uma tinta semelhante às antigas. Como a datação da tinta não foi feita, essa possibilidade continuava a existir.
Pois bem, aquilo que parecia ser o principal (e único) argumento em favor da autenticidade do fragmento tornou-se a pista para que mais uma evidência - talvez a definitiva - fosse encontrada.
O que muitos (eu, inclusive) não sabiam, é que aparentemente uma das amostras de tinta utilizadas na comparação vinha de um outro fragmento de origem desconhecida que contém um trecho do Evangelho de João. E esse fragmento faria parte do mesmo conjunto de fragmentos do qual faria parte o "Evangelho da Esposa de Jesus" e teria sido entregue à King pela mesma pessoa que lhe entregou o "Evangelho da Esposa de Jesus". Ora, uma tal comparação apresenta, por si só, vários problemas metodológicos. Como basear tal comparação em um fragmento de origem e datas desconhecidas?
De qualquer forma, o melhor ainda estaria por vir. Christian Askeland analisou paleograficamente o fragmento do Ev. de João e concluiu que o escriba que copiou o texto é o mesmo que copiou o texto do fragmento do "Evangelho da Esposa de Jesus"; e mais, ele (ou ela) o fez utilizando o mesmo instrumento. Askeland foi além e observou que o fragmento do Ev. de João estava escrito no dialeto Licopolitano do copta; e é aí que a cobra começou a fumar.
Sabe-se que a maioria dos dialetos "menores", entre eles o licopolitano, do copta começou a desaparecer gradualmente a partir do séc. V; não há mais traços desse dialeto a partir do séc. VI. Mas se lembrarmos da datação dos fragmentos (tanto o do Ev. João, quanto o do "Evangelho da Esposa de Jesus") feita pelo tal carbono 14 - entre os séculos VII e IX - algo não bate. Não existia mais dialeto licopolitano nessa época.
Askeland foi além e descobriu que o fragmento do Ev. de João é uma reprodução fiel do chamado Codex Qau, escrito em Licopolitano. O codex em questão foi editado em 1924 por Herbert Thompson (para mais detalhes, em inglês, clique aqui).
Suciu seguiu a pista apontada por Askeland e descobriu que a disposição das linhas no fragmento segue exatamente a disposição das linhas da edição de Thompson (para mais detalhes, em inglês, clique aqui). Ou seja, trocando em miúdos, o falsificador moderno simplesmente copiou o texto da edição de Thompson.
De qualquer forma, o melhor ainda estaria por vir. Christian Askeland analisou paleograficamente o fragmento do Ev. de João e concluiu que o escriba que copiou o texto é o mesmo que copiou o texto do fragmento do "Evangelho da Esposa de Jesus"; e mais, ele (ou ela) o fez utilizando o mesmo instrumento. Askeland foi além e observou que o fragmento do Ev. de João estava escrito no dialeto Licopolitano do copta; e é aí que a cobra começou a fumar.
Sabe-se que a maioria dos dialetos "menores", entre eles o licopolitano, do copta começou a desaparecer gradualmente a partir do séc. V; não há mais traços desse dialeto a partir do séc. VI. Mas se lembrarmos da datação dos fragmentos (tanto o do Ev. João, quanto o do "Evangelho da Esposa de Jesus") feita pelo tal carbono 14 - entre os séculos VII e IX - algo não bate. Não existia mais dialeto licopolitano nessa época.
Askeland foi além e descobriu que o fragmento do Ev. de João é uma reprodução fiel do chamado Codex Qau, escrito em Licopolitano. O codex em questão foi editado em 1924 por Herbert Thompson (para mais detalhes, em inglês, clique aqui).
Suciu seguiu a pista apontada por Askeland e descobriu que a disposição das linhas no fragmento segue exatamente a disposição das linhas da edição de Thompson (para mais detalhes, em inglês, clique aqui). Ou seja, trocando em miúdos, o falsificador moderno simplesmente copiou o texto da edição de Thompson.
Suciu postou em seu site uma foto na qual ele coloca, lado a lado, o fragmento do Ev. de João e a foto da edição de Thompson com o trecho correspondente, para não deixar dúvidas que a disposição das linhas é a mesma. Quem souber um pouquinho de copta, pode dar uma olhada:
Algo semelhante já havia sido dito sobre o próprio "Evangelho da Esposa de Jesus"; ao que tudo indica, o falsificador moderno - o mesmo que falsificou o supracitado fragmento do Ev. de João - copiou frases soltas do Ev. de Tomé, usando igualmente uma edição moderna.
Como a pessoa que copiou ambos os fragmentos é a mesma, não resta dúvidas em relação à falsificação. Aquilo que todos já sabiam, foi confirmado definitivamente. Como o próprio Suciu disse, "caso encerrado".
O prof. Louis Painchaud sugeriu uma possibilidade interessante ontem: e se o falsificador tivesse deixados pequenas pistas de que se trata de uma falsificação, para ver se eram descobertas? E se ele fez isso para "testar" os estudiosos? Para ver se eram capazes de descobrir a fraude.
Resta agora saber se King vai se pronunciar sobre o assunto e se saberemos quem é o falsificador.