A jornalista Luciana Alvarez, do portal UOL, me entrevistou por e-mail essa semana; seu objetivo era redigir uma matéria sobre o Natal, matéria esta que, diga-se de passagem, ainda não foi publicada. Procurei responder as perguntas de maneira ascessível. No entanto, as respostas ficaram um pouco longas e ela decidiu me citar somente em três parágrafos da matéria.
Para não desperdiçar, portanto, meu trabalho, resolvi publicar as minhas respostas aqui no blog, apenas modifiquei alguns detalhes na formulação das peguntas feitas pela jornalista.
Como tive apenas alguns dias para redigir as respostas, não houve tempo para achar todas as referências detalhadamente; fico devendo, portanto, algumas referências completas, como quando cito Tertuliano e Agostinho, por exemplo.
- É possível dizer com segurança que Jesus existiu de fato?
Sim, é possível dizer com segurança que Jesus existiu de fato. A quantidade de fontes antigas que mencionam Jesus é considerável, muitas delas compostas em períodos praticamente contemporâneos ao próprio Jesus. Veja o exemplo do Novo Testamento: os escritos neo-testamentários foram todos compostos ainda no séc. I; algumas epístolas paulinas já na década de 50. Não faria sentido pensar que uma quantidade tão grande de fontes, compostas quase que ao mesmo tempo, ou num curto período de tempo, e por autores diferentes fizessem referência a uma pessoa que nunca existiu, ou que fosse mero fruto de uma invenção. Além do mais, até onde sei, não se conhece nenhuma fonte antiga que questione a existência de Jesus em si. Pode-se até chegar a questionar se essas fontes apresentam uma imagem fidedigna de Jesus, mas o fato de que elas falam de uma pessoa que realmente existiu está acima de qualquer suspeita.
Poder-se-ia mencionar ainda a rica tradição oral que se desenvolveu ao redor da figura de Jesus, Seus ensinamentos e dizeres, ainda no séc. I e que não chegou a ser registrada nos escritos neo-testamentários, mas que ecoa em obras cronologicamente posteriores – mas que ainda fazem parte da antiguidade – como algumas obras dos chamados Padres da Igreja, por exemplo.
Existem ainda menções de Jesus em obras antigas não cristãs. As mais conhecidas aparecem nos livros 18 e 20 da obra Antiguidades Judaicas do historiador judeu Flávio Josefo, (que viveu entre os anos 37 e 100). A menção do livro 18, que fala da execução de Jesus sob a autoridade de Pôncio Pilatos é conhecida entre os historiadores como “Testemunho Flaviano”, e é um dos temas mais estudados pelos especialistas desse historiador. A menção do livro 20 fala especificamente de João Batista. A autenticidade dessas menções, no entanto, é questionada, alguns historiadores levantaram a possibilidade de interpolação cristã, já que os manuscritos nos quais as Antiguidades Judaicas foram preservadas são posteriores à época em que Josefo viveu (o que é comum em se tratando de textos antigos, praticamente todos os textos antigos que conhecemos hoje foram preservados em manuscritos posteriores, sejam da antiguidade tardia, seja da Idade Média). A questão está longe de ser resolvida, no entanto. Há quem creia em interpolação, há quem creia em relato autêntico. Hoje em dia, a maioria dos especialistas tende a acreditar, no entanto, que ao menos a menção no livro 20 das Antiguidades Judaicas é, de fato, autêntica. Já o chamado Testemunho Flaviano (a menção do livro 18) gera mais dúvida. De qualquer maneira, estamos diante de relatos de um não cristão, provavelmente autênticos, que falam de maneira clara de Jesus. Mais uma evidência clara de que Jesus de fato existiu.
A ideia segundo a qual Jesus não teria existido e que seria fruto de uma invenção mítica surgiu provavelmente no séc. XVIII e tem motivações muito mais ideológicas do que históricas. As pessoas que duvidam da existência de Jesus são comumente chamadas em inglês de “mythicists” e são hoje bem ativas na internet. O fato é que há evidências fortes o suficiente para demonstrar que Jesus existiu (eu te mostrei algumas acima) e nenhum estudioso sério jamais defendeu o contrário. A quantidade de fontes antigas que menciona Julio César, por exemplo, é muito menor do que a quantidade de fontes antigas que menciona Jesus. No entanto, eu nunca vi ninguém questionar a existência do primeiro. Portanto, as dúvidas em torno da existência de Jesus são de cunho ideológico, não histórico; quem duvida o faz como maneira de tentar questionar ou desacreditar as religiões cristãs.
- Existem evidências históricas sobre o recenseamento que teria levado Maria e José a Belém, para que Jesus nascesse nessa cidade e não em Nazaré?
Mais uma vez, a resposta da pergunta parece estar na obra de Flávio Josefo, novamente no livro 18 das Antiguidades Judaicas. Josefo fala de um censo que ocorreu nas províncias da Síria e da Judeia – chamado Censo de Quirino – mais ou menos no período que coincidiria com o nascimento de Jesus. O objetivo desse censo era tributário. Há, no entanto e aparentemente, três diferenças em relação ao relato do Evangelho de Lucas: 1- O Censo descrito por Josefo não parece ter se entendido a todo o império Romano, mas somente as províncias da Síria e da Judeia; 2- Ele não menciona a necessidade de se retornar à cidade natal dos antepassados; 3- O censo descrito por Josefo aconteceu entre os anos 6/7.
Sabe-se ainda que Otávio Augusto (imperador Romano na época em que Jesus nasceu) ordenou ao menos 3 vezes que um censo em todo o império fosse feito, mas provavelmente somente os cidadãos romanos eram recenseados.
A data mencionada por Josefo para o censo na Judeia e Síria seria entre os anos 6 e 7; no entanto, existe a possibilidade de Josefo ter se enganado, já que ele escreveu sua obra várias décadas depois; outra possibilidade é que Jesus tenha nascido alguns anos depois do que se crê tradicionalmente. No entanto, a melhor maneira de resolver esse enigma é provavelmente levar em conta o relato de Tertuliano (escritor cristão que viveu entre 160 e 225); Tertuliano diz que o “censo de Quirino” foi realizado em duas etapas e o próprio Evangelho de Lucas menciona que “este primeiro alistamento foi feito sendo Quirino presidente da Síria” (Lc, 2, 2). Assim sendo, a data fornecida por Josefo diz respeito somente à segunda etapa do recenseamento, esta sim ocorrida entre os anos 6 e 7. Em relação à possibilidade de deslocamento de José e Maria para Belém, do ponto de vista meramente literário e histórico, não há como comprová-la, mas também não há como descartá-la.
- Em que ano Jesus teria nascido?
Impossível saber com certeza. Os Evangelhos não fornecem datas precisas, apenas indícios e muitas variáveis devem ser consideradas, como a diferença de calendários adotados por judeus e romanos à época, por exemplo.
Tradicionalmente, os historiadores têm utilizado 2 abordagens para tentar desvendar o ano de nascimento de Jesus: 1- uma estimativa que tem por base os relatos da natividade nos Evangelhos de Mateus e Lucas (lembrando que os Evangelhos de Marcos e João não possuem relatos da Natividade); 2- uma tentativa de estabelecer o ano da Natividade analisando de forma reversa a cronologia do ministério de Jesus. Falemos brevemente sobre ambas as abordagens.
1- Tanto Lucas quanto Mateus relatam que Jesus nasceu durante o reinado de Herodes, o Grande, o que provavelmente situaria a Natividade de Jesus entre os anos 6 e 4 a.C. Já falamos sobre a data do recenseamento fornecida por Josefo e como o relato de Tertuliano nos ajuda a decifrar o enigma. Portanto, levando em conta os relatos da Natividade nos Evangelhos de Lucas e Mateus, o mais provável é que Cristo tenha de fato nascido alguns antes da data tradicional, cerca de 6 a 4 anos antes. Essa diferença, como eu disse, pode provavelmente ser explicada pelas diferenças entre os diferentes calendários usados na época.
2- A abordagem que leva em conta a cronologia do ministério de Jesus é mais complexa e se baseia primeiramente no relato de Lc 3, 23 segundo o qual ao ser batizado por João Batista, ou seja, no início de Sua vida pública, Ele tinha cerca de 30 anos. A partir daí, devemos considerar outros trechos dos evangelhos ou de outras fontes que podem nos revelar algumas datas: o trecho mais conhecido está, novamente, no evangelho de Lucas, que diz em 3,1-2 que no “ano 15 do reinado de Tíberio” João Batista começou a proclamar. Ora, Tibério foi imperador do ano 14 ao ano 37, portanto, o 15º ano do reinado de Tibério é o ano 29. Ou seja, João começou a proclamar no ano 29, um pouco antes do início da vida pública de Jesus, que, como o próprio Lucas nos diz, começou quando Ele tinha cerca de 30 anos. Assim sendo, Jesus teria nascido um pouco antes do início da era cristã propriamente dita.
Portanto, levando em conta ambas as abordagens e o nosso calendário atual, o mais provável é que Jesus tenha mesmo nascido alguns anos antes do início da era cristã propriamente dita (entre os anos 6-4 a.C). Essa pequena diferença, como dito anteriormente, pode ser possivelmente explicada pelas diferenças entre os calendários usados à época e também pelas discrepâncias geradas pela substituição do calendário Juliano pelo Gregoriano, no séc. XVI, já que o segundo é mais preciso que o primeiro.
- A cidade na qual Jesus nasceu foi mesmo Belém?
Apesar de existir a possibilidade de os relatos evangélicos estarem somente fazendo referência à profecia de Miqueias (Miq 5,1), o fato de não existir nenhuma fonte antiga que conteste que Belém foi realmente o local de nascimento de Jesus é bastante elucidativo. As duas únicas fontes que falam da Natividade a situam em Belém, e nenhuma outra fonte diz o contrário, portanto, em princípio, não haveria razão para duvidar do fato de que Jesus realmente nasceu na cidade em questão.
- Por que celebramos o Natal no dia 25 de dezembro? Há alguma evidência de que Jesus teria nascido nesta data?
Diferentemente da Paixão, cuja data pode ser conhecida com precisão, nada pode nos garantir em qual dia ou mesmo qual época do ano Jesus nasceu. Os evangelhos não fornecem nenhuma data, nem mesmo uma indicação direta da época em que Jesus nasceu. Até onde sei, o número de fontes antigas que mencionam uma data é restrito, porém interessante: um martirológio romano do séc. IV, por exemplo, menciona o dia 25 de dezembro. Tal fonte é, no entanto, um pouco tardia e não serve para atestar que Jesus nasceu de fato no dia 25 de dezembro, serve, no entanto, para mostrar que, já na antiguidade tardia existiam cristãos que celebravam o nascimento de Jesus no dia em questão. Agostinho, na segunda metade do séc. IV e início do sec. V, afirma que os Donatistas celebravam a Natividade no dia 25 de dezembro; mais uma vez, temos um exemplo tardio que não serve para atestar que Jesus nasceu no dia 25, mas que atesta que já na antiguidade tardia existiam cristãos que celebravam o Natal nessa data. Epifânio, também no final do séc. IV, diz que Jesus foi concebido no seio de Maria no dia 6 de abril (mais nove meses, e Ele teria nascido em janeiro, por volta do dia 6, data na qual se celebra liturgicamente a festa da Epifania). Mas o mesmo comentário aplicado às duas fontes anteriores serve para esta: trata-se de um relato relativamente tardio, que não serve para provar que Jesus nasceu no dia 25, ou nesse caso no dia 6 de janeiro, mas apenas para evidenciar que na antiguidade tardia existiam cristãos que acreditavam nisso.
A explicação mais conhecida e tradicional para o nascimento de Jesus ser celebrado no dia 25 de dezembro está ligada à celebração do festival de inverno na antiguidade – comemorado por volta do dia 21, data do início do inverno em geral. Em 274, o imperador Aureliano instituiu, além do tradicional festival de inverno, a festa do nascimento do Sol Invictus, no dia 25 de dezembro. Na medida em que o império romano foi se cristianizando, essa festa pagã deixou de ter importância e seu significado foi gradualmente modificado, passando a ser celebrado como festa do nascimento de Jesus. A ausência de fontes cristãs antigas que apoiem essa teoria, no entanto, é um fator de peso que leva a questioná-la.
Alguns estudiosos tentaram demonstrar que Jesus realmente nasceu no dia 25 de dezembro, baseando-se nos relatos evangélicos e na época na qual João Batista presumivelmente foi concebido e nasceu. Segundo Lc 1, 5.8s, Zacarias, pai de João, era da classe de Abdias e que o próprio João foi concebido durante o serviço sacerdotal de seu pai; presume-se que essa classe exercia suas funções sacerdotais a partir de Julho. Assim sendo, o Batista teria nascido a partir de abril e Cristo (que foi concebido 6 meses depois da concepção do Batista, segundo Lc 1, 26) a partir de outubro. Tal teoria é, no entanto, deveras especulativa e carece igualmente de evidências que possam sustentá-la.
De qualquer maneira, se considerarmos o conjunto dos relatos evangélicos de Lucas e Mateus no tocante à Natividade, a possibilidade de Jesus ter nascido em dezembro é quase que inviável. Dezembro é o mês no qual se inicia o inverno, e não faria sentido pensar em pastores vigiando seus rebanhos de ovelhas ao ar livre nessa época, enfrentando o frio e as chuvas típicas do início dessa estação. Além do mais, existem leis rabínicas que proíbem o pastoreio ao redor de Belém antes de fevereiro. Portanto, o mais provável é que Jesus tenha de fato nascido em outra época do ano. Qual? Impossível saber.
O Natal é comemorado no dia 25 de dezembro provavelmente por questões litúrgicas que surgiram na Idade Média. A Natividade está ligada à missão e ao ministério de Cristo como um todo, cujo ápice é a Paixão e Ressurreição. A Salvação se opera de maneira conjunta e se inicia na Encarnação do Verbo, e se completa com a Paixão e Ressurreição. Assim sendo, liturgicamente, a celebração do Natal dependeria da celebração da Páscoa. No entendimento litúrgico, portanto, Jesus teria sido concebido próximo ao equinócio da primavera no hemisfério norte, data que serve igualmente para estabelecer a data da Páscoa. Segundo Tertuliano, no ano em que Jesus morreu, essa data correspondeu ao dia 25 de março (exatamente nove meses antes do 25 de dezembro). E, de fato, até hoje a liturgia romana celebra a Anunciação (o anúncio do anjo Gabriel à Maria) no dia 25 de março.