Há algumas semanas, num post sobre as cartas festivas de Atanásio de Alexandria, falamos brevemente do cânon bíblico. Presentemente, estou lendo uma bibliografia especializada, que conta ao todo com mais de 3 mil páginas, sobre a controvérsia ariana (vai ser bem útil para o meu doutorado, espero), a grande controvérsia teológica do séc. IV, e talvez a grande controvérsia teológica da história da Igreja.
Mas enfim, o que a controvérsia ariana tem a ver com a questão do cânon bíblico? Então, falamos da carta festiva de 367 de Atanásio de Alexandria como provavelmente a lista completa do cânon bíblico mais antiga que conhecemos; nos comentários, o João nos lembrou ainda do decreto do Papa Dâmaso, de 382. Pois bem, ambos são documentos da segunda metade do séc. IV; lembremos que a controvérsia ariana permeou praticamente todo o século em questão, começando por volta de 318 em Alexandria e, podemos dizer, tendo seu desfecho com o Concílio de Constantinopla I, em 381.
É interessante notar que nas centenas de discussões teológicas do séc. IV relativas à controvérsia ariana, as maiores fontes de argumentos de autoridade de ambos os lados, tanto o pró-niceno quanto o ariano, eram as Escrituras; é mais interessante ainda notar que em momento algum, pelo menos levando em conta as fontes que sobreviveram até hoje, algum Padre da Igreja, ou algum autor eclesiástico qualquer, seja ele ortodoxo ou ariano, usa como argumento de autoridade alguma frase ou passagem de um texto, dando-lhe status de Escritura, que não faça parte da lista que viria a ser definida dogmaticamente por Dâmaso em 382. Ou seja, mesmo não havendo ainda posição dogmática sobre o cânon, havia uma espécie de consenso prático no cristianismo do séc. IV. Não sei se ficou claro ou confuso, se alguém não entendeu, por favor, me diga.
Enfim, não existia ainda consenso em relação ao modo como a divindade de Jesus deveria ser definida, ou mesmo aceita, mas existia consenso em relação a quais textos eram canônicos ou não.